segunda-feira, 11 de agosto de 2008

REVISTA ISTO É: Tortura não é crime político

ALAN RODRIGUES E OCTÁVIO COSTA

A punição de torturadores da ditadura pode ser um caminho para o Brasil conhecer verdades ainda ocultas do regime de 1964.

REBELIÃO DOS MILITARES - Generais e coronéis, da reserva e da ativa, se manifestam contra Tarso Genro no Clube Militar, no Rio, enquanto, do lado de fora, estudantes apóiam o ministro.


O ano era 1979. Desgastado por 15 anos de poder, o regime militar tentava aumentar sua base de sustentação política. Tendo assumido naquele ano, o último general-presidente, João Baptista Figueiredo, enviou ao Congresso uma lei que anistiava os cidadãos acusados de cometer crimes políticos durante os "anos de chumbo". Mas a lei incluía os chamados "crimes conexos" - um eufemismo para livrar torturadores do regime de processos futuros. Aprovada em agosto daquele ano, a Lei da Anistia beneficiou 4.650 pessoas e gerou uma espécie de amnésia coletiva - os militares nunca tornaram públicos os detalhes das ações de repressão ao terrorismo, se aposentaram como se todos os arbítrios da ditadura fossem uma página virada e jamais foram legalmente cobrados pelos crimes que porventura tenham cometido.

Até que, num seminário interno, de nome tão caudaloso quanto prolixo (Limites e Possibilidades para a Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no Brasil), o ministro da Justiça, Tarso Genro, disse que não considerava tortura e violação de direitos humanos crimes políticos, mas comuns. "A partir do momento em que o agente do Estado pega o prisioneiro e o tortura num porão, ele sai da legalidade do próprio regime militar e se torna um criminoso comum", disse Genro, repetindo um raciocínio que havia exposto recentemente numa entrevista à ISTOÉ. Mas aí veio a frase que ressuscitou a ira dos militares: "Ele (o torturador) violou a ordem jurídica da própria ditadura e tem que ser responsabilizado (...) atos de tortura não podem ser beneficiados pela anistia."

Tarso Genro não pretende reabrir a Lei da Anistia, mas defende que os responsáveis pela tortura durante o regime militar respondam criminalmente com base na Convenção Internacional de Direitos Humanos, um pacto internacional feito em 1969 em São José da Costa Rica - e que o Brasil só assinou durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Na realidade, corre em São Paulo uma ação civil pública contra os comandantes do DOI-Codi, o maior órgão de repressão e tortura da ditadura: "Crimes contra a humanidade são imprescritíveis", diz o procurador da República de São Paulo, Marlon Alberto Weichert, um dos autores da ação. "Do ponto de vista técnico, a lei não pode perdoar agentes do Estado que praticaram esses crimes."

O barulho em torno de Genro se deu porque, a partir de agora, a defesa da punição a torturadores passa a ser também uma questão de governo. E, na Esplanada dos Ministérios, essa tese está longe de ser unânime. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, saiu a campo para desautorizar o colega da Justiça: "Essa é uma questão exclusivamente da área do Poder Judiciário, de interpretação da lei. Mudar essa legislação seria a mesma coisa que revogar aquilo que já foi decidido anteriormente, que foi uma pacificação nacional." É certo que a punição a torturadores, em última instância, cabe ao Poder Judiciário e depende de interpretação de leis. Mas para quem ficou à mercê de um agente do Estado, sendo submetido às piores sevícias, como ocorreu com muitos ministros e ministras do governo Lula, é difícil se convencer de que exista aí uma pacificação nacional.

O general Enzo Martins Peri, chefe do Exército, disse ao presidente Lula que "é preciso pôr uma pedra sobre esse assunto, até porque, este tema abre feridas e provoca indignação". Tem razão e não há mal nenhum nisso até porque as feridas não foram fechadas - e é isso que prova a indignação do ministro da Justiça com a tortura. Num caso que beira à indisciplina, o comandante militar do Leste, general Luiz Cesário da Silveira, tirou o uniforme e foi "como pessoa física" a um seminário sobre a Lei da Anistia no Clube Militar do Rio de Janeiro, na quinta- feira 7. Tudo um eufemismo para se criar o palco para protestos destemperados contra Genro.

Menos expostos à disciplina que pesa sobre os militares da ativa, os oficiais da reserva fizeram pulsar a velha veia autoritária. "Se eu tivesse uma arma, eu dava um tiro na cara dele", disse o coronel Lício Maciel, oficial do Exército que atuou na Guerrilha do Araguaia. "Esse ministro é um canalha, um revanchista", acusou o coronel Juarez Gomes da Silva. A rebelião do pijama reuniu cerca de 800 pessoas, entre civis e militares, entre eles, o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército do governo José Sarney.

A idéia dos militares é lançar, nos próximos dias, uma campanha publicitária, começando pelo Rio, mostrando que vários "terroristas" estão no poder (leia quadro acima). "Será a abertura dos arquivos militares que eles tanto queriam", diz o coronel Gomes da Silva, um dos idealizadores da campanha. O projeto será encampado pelo site Ternuma - Terrorismo Nunca Mais, contrapartida dos militares ao movimento Tortura Nunca Mais. "Vamos mostrar que, na verdade, são eles que merecem estar no banco dos réus", disse o coronel.

O presidente do clube, general Gilberto Figueiredo, disse que o ministro da Justiça "quis lamber as feridas que já estavam cicatrizando". Para Figueiredo, Genro deveria se preocupar com feridas "recentes", como o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, o escândalo do mensalão, os "dossiês produzidos por aloprados" e "indícios da ligação de membros do governo com as Farc". Tudo certo, mas uma coisa não substitui a outra. Não é por causa das Farc que o governo deveria deixar de lado a defesa da responsabilização pelos crimes do passado.

Em resposta à manifestação dos saudosistas da ditadura, estudantes e membros do movimento Tortura Nunca Mais realizaram um protesto em frente à sede do Clube Militar. Os manifestantes aguardavam a saída do coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi de São Paulo, notório centro de torturas entre 1970 e 1976. Ustra, fervoroso defensor da repressão e um dos processados pelo Ministério Público por violação de direitos humanos, não deu entrevistas e saiu, à moda antiga, por uma porta dos fundos. Quando o deputado federal Jair Bolsonaro deixou o local, a polícia teve que escoltá-lo até seu veículo. "O erro foi torturar e não matar", disparou Bolsonaro contra os manifestantes.

Em defesa de Genro, o secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, reconhece a necessidade de se discutir o tema. "Temos que desobstruir e desentupir os ouvidos da falácia de dizer: 'por que mexer nas feridas do passado?'", disse ele à ISTOÉ. "A resposta é da presidente do Chile, Michelle Bachelet, com sua autoridade de médica: 'Porque só as feridas lavadas cicatrizam.'" A declaração do ministro da Justiça teve o mérito imediato de relançar o debate. Para o jurista e ex-ministro Paulo Brossard, "a Lei da Anistia é irrecusável e irrevogável. Juridicamente falando, é um blefe querer punir os torturadores da ditadura". Brossard diz que a anistia foi um ato de "concórdia e esquecimento" e não pode ser rasgada. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, pensa diferente. "A tortura nunca foi reconhecida como instrumento válido durante a ditadura, portanto aqueles que praticaram esses atos bárbaros não podem estar protegidos pela anistia", disse Britto. "A anistia foi ampla, por isso não se deve inventar agora a tortura, porque ela não existiu como fato típico criminal em 1979", contrapõe Waldemar Zveiter, ex-ministro do STJ.

Embora o assunto nunca tenha sido realmente debatido pelos partidos de esquerda, nem mesmo no PT, uma saída batizada como "à África do Sul" unifica várias correntes que combateram a ditadura. Para curar as feridas do apartheid, Nelson Mandela elaborou uma Comissão de Verdade e Reconciliação que apurou os crimes do regime, mas não houve punição. "Acho que o modelo adotado por eles é melhor", diz o ex-guerrilheiro e deputado Fernando Gabeira (PV-RJ). "O mais importante seria a abertura dos arquivos da ditadura", afirma.

O certo é que já é tempo de o Brasil conhecer, de fontes oficiais do governo da época, o que ocorreu nos porões da ditadura. Mesmo porque muitas famílias até hoje não enterraram seus mortos - simplesmente porque só nos arquivos das Forças Armadas seria possível saber onde os guerrilheiros foram mortos. Países com situações políticas mais complexas do que a do Brasil, como o Chile e a Argentina, onde a direita inclusive tem peso eleitoral, já fizeram o acerto de contas com o passado e seguiram em frente. O Brasil não pode ficar refém de minorias sem voto que se valem do medo para impedir a verdadeira reconciliação dos brasileiros.

Colaborou Renata Cabral















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