quinta-feira, 19 de março de 2009

VOTO-VISTA DO MINISTRO DO STF, MARCO AURELIO MELO, SOBRE A DEMARCAÇÃO DA RESERVA INDÍGENA RAPOSA-SERRA DO SOL EM ÁREA CONTÍNUA - 18/03/2009

PETIÇÃO 3.388-4 RORAIMA

RELATOR: MIN. CARLOS BRITTO

REQUERENTE(S): AUGUSTO AFFONSO BOTELHO NETO

ADVOGADO(A/S): CLÁUDIO VINÍCIUS NUNES QUADROS

ASSISTENTE(S): FRANCISCO MOZARILDO DE MELO CAVALCANTI

ADVOGADO(A/S): ANTONIO GLAUCIUS DE MORAIS E OUTROS

REQUERIDO(A/S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

VOTO-VISTA

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Ação popular ajuizada pelo Senador Augusto Affonso Botelho Neto em face da União, pleiteando a declaração de nulidade da Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça, homologada pelo Presidente da República em 15 de abril de 2005, em que definidos os limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Sustenta, em síntese, que o ato derivou de procedimento de demarcação viciado e ofende os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, segurança jurídica, legalidade e devido processo legal.

A competência do Supremo foi fixada no julgamento da Reclamação nº 2.833-0/RR, da relatoria do ministro Carlos Ayres Britto. Na ocasião, com fundamento no artigo 102, inciso I, alínea “f”, da Constituição Federal, assentou-se caber a esta Corte julgar as lides envolvendo a questão da nulidade do processo demarcatório da Reserva Raposa Serra do Sol, presente o resguardo do patrimônio público do Estado de Roraima, tendo sido cassadas liminares anteriormente formalizadas.

Em seguida, considerada a revogação da Portaria nº 820/98 e a edição da Portaria nº 534/05, a competência veio a ser novamente assentada.

Confiram:

RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA. PROCESSOS JUDICIAIS QUE IMPUGNAM A PORTARIA Nº 534/05, DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE DEMARCOU A RESERVA INDÍGENA DENOMINADA RAPOSA SERRA DO SOL, NO ESTADO DE RORAIMA. Caso em que resta evidenciada a existência de litígio federativo em gravidade suficiente para atrair a competência desta Corte de Justiça (alínea "f" do inciso I do art. 102 da Lei Maior). Cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar ação popular em que os respectivos autores, com pretensão de resguardar o patrimônio público roraimense, postulam a declaração da invalidade da Portaria nº 534/05, do Ministério da Justiça. Também incumbe a esta colenda Corte apreciar todos os feitos processuais intimamente relacionados com a demarcação da referida reserva indígena. Reclamação procedente.

(Reclamação nº 3.331-7/RR, acórdão publicado no Diário da Justiça de 17 de novembro de 2006)

O Tribunal, em 9 de abril de 2008, apreciando pedido de liminar na Ação Cautelar nº 2.009-3/RR, suspendeu as operações policiais cujo objetivo fosse a retirada dos brasileiros não-índios da parte da reserva indígena Raposa Serra do Sol ainda ocupada por eles.

A) DOS ATOS IMPUGNADOS

Segundo a inicial, em 11 de dezembro de 1998, o Ministro da Justiça editou a Portaria nº 820, com o propósito de declarar os limites da terra indígena situada na área denominada Raposa Serra do Sol, determinando a demarcação, nos termos do artigo 2º, § 10, inciso I, do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996.

A referida Portaria acabou substituída pela de nº534, de 13 de abril de 2005, posteriormente homologada por Decreto de 15 de abril de 2005. Eis os principais dispositivos do ato (folha 26 a 28):

PORTARIA Nº 534, DE 13 DE ABRIL DE 2005

O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, no uso de suas atribuições, observando o disposto no Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996, e com o objetivo de definir os limites da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e Considerando que a Portaria MJ nº 820/98 não contempla solução para questões de fato controvertidas ressalvadas no Despacho nº 50, de 10 de dezembro de 1998, do então Ministro da Justiça; Considerando ser conveniente e oportuno solucionar, de modo pacífico, situações de fato controvertidas ressalvadas no referido Despacho nº 50;

Considerando que os atos praticados com fundamento na Portaria MJ nº 820, de 11 de dezembro de 1998, são válidos e devem ser aproveitados;

Considerando que o Parque Nacional do Monte Roraima pode ser submetido, por decreto presidencial, a regime jurídico de dupla afetação, como bem público da União destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios que ali vivem;

Considerando que o Decreto nº 4.412, de 7 de outubro de 2002, assegura a ação das Forças Armadas, para defesa do território e da soberania nacionais, e do Departamento de Polícia Federal, para garantir a segurança, a ordem pública e a proteção dos direitos constitucionais dos índios, na faixa de fronteira, onde se situa a Terra Indígena Raposa Serra do Sol;

Considerando, por fim, o imperativo de harmonizar os direitos constitucionais dos índios, as condições indispensáveis para a defesa do território e da soberania nacionais, a preservação do meio ambiente, a proteção da diversidade étnica e cultural e o princípio federativo;

Resolve:

Art. 1º Ratificar, com as ressalvas contidas nesta Portaria, a declaração de posse permanente dos grupos indígenas Ingarikó, Makuxi, Taurepang e Wapixana sobre a Terra Indígena denominada Raposa Serra do Sol.

Art. 2º A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com superfície de um milhão, setecentos e quarenta e três mil, oitenta e nove hectares, vinte e oito ares e cinco centiares e perímetro de novecentos e cinqüenta e sete mil, trezentos e noventa e nove metros e treze centímetros, situada nos Municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, Estado de Roraima, está circunscrita aos seguintes limites:

[...]

Art. 3º A terra indígena de que trata esta Portaria, situada na faixa de fronteira, submete-se ao disposto no art. 20, § 2º, da Constituição.

Art. 4º Ficam excluídos da área da Terra Indígena Raposa Serra do Sol:

I - a área do 6º Pelotão Especial de Fronteira (6ºPEF), no Município de Uiramutã, Estado de Roraima;

II - os equipamentos e instalações públicos federais e estaduais atualmente existentes;

III - o núcleo urbano atualmente existente da sede do Município de Uiramutã, no Estado de Roraima;

IV - as linhas de transmissão de energia elétrica; e

V - os leitos das rodovias públicas federais e estaduais atualmente existentes.

Art. 5º É proibido o ingresso, o trânsito e a permanência de pessoas ou grupos de não-índios dentro do perímetro ora especificado, ressalvadas a presença e a ação de autoridades federais, bem como a de particulares especialmente autorizados, desde que sua atividade não seja nociva, inconveniente ou danosa à vida, aos bens e ao processo de assistência aos índios.

Parágrafo único. A extrusão dos ocupantes não-índios presentes na área da Terra Indígena Raposa Serra do Sol será realizada em prazo razoável, não superior a um ano, a partir da data de homologação da demarcação administrativa por decreto presidencial.

Art. 6º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

B) DOS VÍCIOS PROCESSUAIS DA AÇÃO POPULAR NO ÂMBITO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Inicialmente, faz-se necessário trazer ao conhecimento deste Plenário questões de ordem pública relativas ao trâmite da ação popular. Considero tais questões de extrema relevância, sendo inclusive uma das razões pelas quais formulei o pedido antecipado de vista, frustrado ante o fato de os integrantes que votam normalmente anteriormente a mim não terem consentido, anunciando o convencimento a respeito do momentoso tema e quebrando, com isso, uma tradição do Tribunal: em face de pedido antecipado de vista, aguardarem, para votar, os demais.

Antes de tudo, repito o que já frisei em outras ocasiões: o Supremo tem a guarda da Constituição e não pode despedir-se desse dever, imposto de forma expressa pelo Constituinte de 1988, sob pena de a história cobrar-lhe as conseqüências da omissão, de comprometimento da própria credibilidade. No sempre oportuno dizer do ministro Néri da Silveira, o Supremo é órgão da República, última trincheira do cidadão, comprometido com os princípios caros a Estado que se diga organizado, a Estado de Direito, responsável, enfim, pela palavra final sobre conflitos de interesses que se lhe apresentam para julgamento. Eis a melhor síntese sobre o primordial papel do Tribunal. Paga-se um preço por se viver em uma democracia e ele não é exorbitante, mas módico, encontrando-se ao alcance de todos os homens de boa vontade. Implica apenas o respeito irrestrito ao arcabouço normativo.

DA NECESSIDADE DE CITAÇÃO DAS AUTORIDADES QUE EDITARAM A PORTARIA Nº 534/2005 E O DECRETO HOMOLOGATÓRIO

Inicialmente, cumpre verificar o que apontado no memorial distribuído pelo ex-ministro Maurício Corrêa:

Cuida-se de ação popular cujo objeto é a anulação da Portaria nº 534/2005 do Ministério da Justiça, que promoveu a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Permita apresentar algumas considerações sobre o tema.

2. Na linha do que foi suscitado pelo ilustre Advogado-Geral da União em sua sustentação oral, cumpre chamar a atenção, de início, para a inadequada composição do pólo passivo da demanda. Na forma do artigo 6º da Lei nº 4.717/65 c/c 47 do CPC, a ação popular será proposta contra a pessoa jurídica de direito público e as autoridades que houverem praticado o ato.

3. Entretanto, apenas a União foi intimada a contestar a ação, faltando integrar a lide o senhor Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça que editou a Portaria, e o senhor Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República que, com aquele, assinou o decreto homologatório respectivo.

4. Trata-se de litisconsórcio passivo necessário legal cuja formação é pressuposto de validade da relação processual. Por revelar matéria de ordem pública, afeta às condições da ação, pode ser deduzida até mesmo de ofício e em qualquer fase processual.

Sim, acertado é o argumento. De acordo com o artigo 6º da Lei nº 4.717/65, “a ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art.1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.”

Pelo que consta do sítio do Supremo, o que confirmei no exame do processo, as partes da presente ação são as seguintes:

PARTES

Categoria Nome

REQTE.(S) AUGUSTO AFFONSO BOTELHO NETO

ADV.(A/S) CLÁUDIO VINÍCIUS NUNES QUADROS

ASSIST.(S) FRANCISCO MOZARILDO DE MELO CAVALCANTI

ADV.(A/S) ANTONIO GLAUCIUS DE MORAIS

REQDO.(A/S) UNIÃO

ADV.(A/S) ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

Com efeito, é incontroverso ser múltipla, no âmbito da ação popular, a legitimação passiva, formando-se litisconsórcio necessário composto: (a) pelas pessoas cujo patrimônio se pretende proteger; (b) por aqueles que se diz haverem causado a lesão aos bens tutelados: autoridades públicas, funcionários, entre outros; e (c) pelos beneficiários diretos do ato ou da omissão. Colho trecho do voto proferido pelo ministro Carlos Madeira – maranhense a quem sucedi nesta cadeira – no Recurso Extraordinário nº 116.750-5/DF, em que abordado o tema:

[...] As autoridades a que faz menção o artigo 6º da Lei 4.717 são quaisquer autoridades – legislativas, inclusive – e têm de ser citadas; quanto a isso, não há dúvida (RDA 85/399). José Afonso da Silva também sustenta que a lei não discrimina.

“Qualquer autoridade, portanto – diz ele – que houver participado do ato impugnado – autorizando-o, aprovando-o, ratificando-o ou praticando-o – deverá ser citada para a demanda popular, que vise anulá-lo. Assim, desde as autoridades mais elevadas até as de menor gabarito estão sujeitas a figurarem como rés no processo da ação popular. Nem mesmo o Presidente da República, ou o do Supremo Tribunal Federal, ou do Congresso Nacional está imune de ser réu, nesse processo” (Ação Popular Constitucional, 1968, p. 197).

Trago a lição de Hely Lopes Meirelles, em obra atualizada pelo Professor Arnoldo Wald e pelo Presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes1:

[...] Deverão ser citadas para a ação, obrigatoriamente, as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, em nome das quais foi praticado o ato a ser anulado e mais as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado pessoalmente o ato ou firmado o contrato impugnado, ou que, por omissos, tiverem dado oportunidade à lesão, como também os beneficiários diretos do mesmo ato ou contrato (art. 6º).

[...] Em qualquer caso, a ação deverá ser dirigida contra a entidade lesada, os autores e participantes do ato e os beneficiários do ato ou contrato lesivo ao patrimônio público. É o que se infere do disposto no art. 6º, § 2º.

[...]

Faz relevante verificar a redação dos artigos 6º e 7º da Lei nº 4.717/65 e 47 do Código de Processo Civil:

Art. 6º. [...] A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no Artigo 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão e contra os beneficiários diretos do mesmo.

Art. 7º. A ação obedecerá ao procedimento ordinário, previsto no Código do Processo Civil, observadas as seguintes normas modificativas:

[...] § 2º

MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 30ª edição, atualizada por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes. São Paulo: Malheiros. p. 135.

III - Qualquer pessoa, beneficiada ou responsável pelo ato impugnado, cuja existência ou identidade se torne conhecida no curso do processo e antes de proferida a sentença final de primeira instância, deverá ser citada para a integração do contraditório, sendo-lhe restituído o prazo para contestação e produção de provas. Salvo quanto a beneficiário, se a citação se houver feito na forma do inciso anterior;

.........................................................

Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo.

Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que promova a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto o processo.

A jurisprudência está sedimentada no sentido de que se trata de litisconsórcio passivo necessário e a falta de citação de qualquer servidor ou autoridade partícipes do ato ou contrato impugnado é causa de nulidade do processo.

Descabe entender que a citação de pessoa jurídica central – a União – dispensa a das autoridades envolvidas na prática do ato atacado, isso considerados os efeitos de uma possível sentença condenatória – artigos 11 e 18 da Lei nº4.717/65.

Então, cumpre já aqui sanear o processo, citando-se como réus desta ação popular o Ministro de Estado da Justiça e Sua Excelência o Presidente da República.

Idem. Ibidem. Acórdãos citados: TJSC, ApC nº 01.001230-3, Rel. Des. César Abreu, RT 796/392; TJRJ, ApC nº 4.367/96, Rel. Des. Amaury Arruda de Souza, RF 364/360, e TRF-4ª R. ApC nº2001.70.00.000102-3-PR, Rel. Juiz Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, RePro 131/219.

Continuo na abordagem de outros aspectos instrumentais da maior relevância, consignando ser o processo não a forma pela forma, mas liberdade em sentido maior, saber o que pode acontecer na tramitação de uma causa, abrindo-se oportunidade de defesa àqueles cujas situações jurídicas, constituídas, legitimamente ou não, possam ser alcançadas por

ato coercitivo do Estado-Juiz.

O direito de defender-se é, antes de mais nada, um direito natural, senão a mola-mestra do processo – o contraditório -, reveladora de predicado da dignidade do homem, fundamento que tenho como síntese dos demais previstos, também, no artigo 1º da Carta Federal. Sem ele não é dado falar em soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político. Do homem para o homem há de ser a tônica da vida pública, da vida gregária, a interpretação inafastável do arcabouço normativo pátrio.

AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO ESTADO DE RORAIMA E DOS MUNICÍPIOS DE UIRAMUTÃ, PACARAIMA E NORMANDIA – TRANSGRESSÃO DOS ARTIGOS 1º E 6º DA LEI Nº 4.717/1965 - LEI DA AÇÃO POPULAR O Estado de Roraima não foi citado para integrar a lide. Tampouco o foram os Municípios de Uiramutã, Pacaraima e

Normandia, cujas áreas geográficas estão em jogo neste processo.

O Tribunal já reconheceu a natureza singular da substituição processual, conquanto o cidadão, em ação popular de competência originária do Supremo, atue defendendo o interesse de ente federado em face de ato lesivo praticado pela União.

Confiram a ementa do acórdão relativo à Reclamação nº 424-4/RJ, relator ministro Sepúlveda Pertence, publicada no Diário da Justiça de 6 de junho de 1996:

Ação popular: natureza da legitimação do cidadão em nome próprio, mas na defesa do patrimônio público: caso singular de substituição processual.

II. STF: competência: conflito entre a União e o Estado: caracterização na ação popular em que os autores, pretendendo agir no interesse de um Estado-membro, postulam a anulação de decreto do Presidente da República e, pois, de ato imputável à União.

No precedente, é certo, reconheceu a Corte a desnecessidade de o ente público titular do patrimônio lesado compor a relação processual, malgrado sujeito da lide, considerada a substituição pelo autor popular.

Não posso, porém, compactuar com tal orientação.

A legitimação não se faz unilateral – do substituto processual – mas concorrente. O particular deve, sim, buscar, mediante ação popular, a preservação da coisa pública, mas esse fato não afasta a necessidade de, a todos os títulos, vir a Juízo a pessoa jurídica de direito público a que a citada coisa pública se faça vinculada. Não pode ser outra a conclusão: mostra-se indispensável para a correta formação do processo que o ente dito alcançado pelo ato lesivo apontado como nulo figure na relação subjetiva processual. Considerem o disposto nos artigos 1º e – mais uma vez - 6º da Lei nº 4.717/1965:

Art. 1º Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União representa os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio ou da receita ânua de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

[...]

Art. 6º. A ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.

Vejam que, na espécie, alega-se lesividade a atingir o patrimônio do Estado de Roraima e dos Municípios de Uiramutã, Normandia e Pacaraima, presente demarcação a acarretar a premissa de as terras pertencerem à União. Reafirmo: argui-se lesão, decorrente de ato praticado pela União, a interesse e patrimônio daqueles entes. Resta claro, assim, que a ação deveria ter sido proposta também contra as referidas Unidades da Federação, onde está situado o patrimônio questionado, para que ou defendessem o ato da União, ou assumissem o polo ativo e pleiteassem, em reforço à posição do autor inicial, a nulidade respectiva.

Tal conclusão encontra amparo na doutrina, conforme já mencionado3:

Em qualquer caso, a ação deverá ser dirigida contra a entidade lesada, os autores e participantes do ato e os beneficiários do ato ou contrato lesivo ao patrimônio público. É o que se infere do disposto no art.6º, § 2º.

Esse enfoque é substancial considerado o fato de o Estado apenas ter ingressado no processo - sendo admitido não como parte, mas como assistente - depois de finda a instrução, a fase probatória, e os Municípios jamais haverem composto a lide. Eis a visão do relator, no voto proferido:

14. Dois dias depois (07.05.2008), foi a vez do Estado de Roraima fazer idêntico movimento, na outra ponta do processo (petição nº 64.182). Pelo que, ao cabo de 120 (cento e vinte) laudas de minuciosa exposição e escorado em abundantes cópias de documentos, aquela unidade federativa também requereu “seu ingresso no feito, na condição de autor, ante a existência de litisconsórcio necessário..., possibilitando, assim, a defesa de seu patrimônio (fls. 5.138/9.063, Volumes 20/36).” Defesa que animou o peticionário a fazer um retrospecto de todos os atos e episódios que confluíram para a demarcação, de forma contínua, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Tudo a compor um processo administrativo que estaria crivado de nulidades formais e materiais, já apontadas na inicial.

15. Não é só. O Estado roraimense houve por bem agregar novos fundamentos à causa do autor popular e seu assistente, assim resumidos: a) inconstitucionalidade do Decreto nº 22/91; b) nulidade da ampliação da área indígena cuja demarcação demandaria feitura de lei; c) impossibilidade de superposição de terras indígenas e parques nacionais; d) ofensa ao princípio da proporcionalidade; e) necessidade de audiência do Conselho de Defesa Nacional; f) impossibilidade de desconstituição de Municípios e títulos de propriedade, por simples decreto presidencial.

16. Nessa mesma toada de intermináveis dissensos é que foram assentados novos pedidos, aplicáveis a “qualquer demarcação de terras indígenas”, a saber:

a) adoção da forma descontínua, ou em “ilhas”;

b) a exclusão das sedes dos Municípios de Uiramutã, Normandia e Pacaraima;

c) exclusão de imóveis com posse ou propriedade anteriores a 1934 e de terras titulas pelo INCRA antes de 1988;

e) exclusão de rodovias estaduais e federais, bem como de plantações de arroz, de áreas de construção e inundação da Hidrelétrica de Contigo e do Parque Nacional de Monte Roraima. Imprescindível anotar que tais postulações fazem parte das causas de pedir do autor, a exigir uma única solução jurídica: a nulidade da portaria do Ministério da Justiça.

17. Por último, o Estado requereu a expedição de ordem à União para que ela se abstivesse “de demarcar qualquer outra área no território do Estado de Roraima, a qualquer título, ou seja, indígena, ambiental, etc.”

Ora, dessa maneira, a Unidade da Federação, não teve os pleitos especificamente levados em conta, ante a admissão na lide não como litisconsorte necessário, mas como assistente. Colho esta conclusão do voto do relator, proferido em questão de ordem que culminou na admissão do Estado:

28. Sem embargo, tenho que o pedido dos retardatários é passível de acolhimento, desde que na moldura menor da assistência, apanhando eles a causa no estado em que ela se encontra. Logo, sem novos fundamentos, pedidos inéditos, tentativas de reabertura da instrução, sem prejuízo, é lógico, da análise das questões de ordem pública trazidas por qualquer deles. Até para evitar desnecessário alongamento do perfil instrutório de uma causa que, torno a dizer, pela sua patente repercussão político-social e elevada estatura constitucional, está a exigir pronta resposta decisória desta nossa Corte Maior de Justiça.

Assim também se pronunciou o ministro Menezes Direito, em voto-vista - após análise, portanto, dos 51 volumes a encerrarem este processo:

Quanto ao Estado de Roraima, sua manifestação e seus argumentos tampouco deixaram de ser observados no processamento e vêm sendo apreciados no julgamento desta ação. Como assistente não poderá, porém, formular outros pedidos.

Ainda que se pudesse defender a inutilidade de o Estado de Roraima figurar como litisconsorte necessário desde o início da demanda e a pertinência da admissão como assistente – enfoque cogitado apenas a título de argumentação -, é certo que o interesse revela-se público e notório, observada a área substancial em jogo – cerca de 7,79% do território estadual -, tendo inclusive sido reconhecido pelo Plenário no julgamento da Reclamação nº 3.331-7/RR, da relatoria do ministro Carlos Ayres Britto – com acórdão publicado no Diário da Justiça de 17 de novembro de 2006. Há expressa menção na ementa, confiram:

RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA. PROCESSOS JUDICIAIS QUE IMPUGNAM A PORTARIA Nº 534/05, DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. ATO NORMATIVO QUE DEMARCOU A RESERVA INDÍGENA DENOMINADA RAPOSA SERRA DO SOL, NO ESTADO DE RORAIMA. Caso em que resta evidenciada a existência de litígio federativo em gravidade suficiente para atrair a competência desta Corte de Justiça (alínea "f" do inciso I do art. 102 da Lei Maior). Cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar ação popular em que os respectivos autores, com pretensão de resguardar o patrimônio público roraimense, postulam a declaração da invalidade da Portaria nº 534/05, do Ministério da Justiça. Também incumbe a esta colenda Corte apreciar todos os feitos processuais intimamente relacionados com a demarcação da referida reserva indígena. Reclamação procedente.

Para fins de registro, colho ainda trecho do voto do relator:

9. No fluxo dessa compreensão das coisas, é de se reconhecer que a impugnação da validade jurídica da citada Portaria nº 534/05, do Ministério da Justiça, acarreta:

a) uma peculiar situação menoscabo da competência constitucional que detém a União para efetuar os procedimentos de demarcação das áreas indígenas (CF, art.231);

b) lesão ao princípio da homogeneidade federativa, este a significar a costura da conciliação possível de interesses entre pessoas estatais que se dotam de autonomia política.

Esta é mais uma matéria pendente de exame, a merecer pronunciamento explícito do Tribunal. Antes, recordem a origem da conclusão sobre a competência do Supremo nesse campo da exceção revelado pela ação popular – a existência de um considerável conflito federativo, vale dizer, um conflito entre a União e uma unidade a compor a Federação, o Estado de Roraima, presentes os Municípios atingidos em seus limites territoriais pela demarcação verificada. Como, então, deixar de citá-los para, até mesmo, figurarem na ação popular aderindo ao autor como previsto no § 3º do artigo 6º da Lei nº 4.717/65. Salta aos olhos a destinação, no campo das conseqüências e facilidades processuais, em admiti-los como partes ou como assistentes, apanhando o processo, neste último caso, no estágio em que se encontrava, ou seja, quando já encerrada a instrução. A organicidade instrumental está capenga, ferida de morte, incidindo o paradoxo acima referido – a admissibilidade do conflito federativo sem que formada a devida relação processual, sem que, até aqui, o Estado, já não falo dos Municípios, figure como parte propriamente dita.

Há de chamar-se o processo à ordem, reabrindo-se, na extensão cabível, a instrução processual, sob pena de grassar a balbúrdia, sob pena de, sem ouvirem-se as partes interessadas, titulares de direitos, viabilizados os meios de prova visando a revelá-los, ter-se, mesmo assim, sentença a elas oponível.

DA AUSÊNCIA DE INTERVENÇÃO OPORTUNA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA INSTRUÇÃO DA AÇÃO POPULAR

Conforme a doutrina de Hely Lopes Meirelles, na citada obra atualizada, “o Ministério Público tem posição singular na ação popular: é parte pública autônoma incumbida de velar pela regularidade do processo, de apressar a produção de prova e de promover a responsabilidade civil ou criminal dos culpados.”

Assim, o Ministério Público deve ser intimado pessoalmente, desde o nascedouro da ação, sob pena de nulidade.

Eis o que preceitua o § 4º do artigo 6º da Lei nº 4.717/1965:

Art. 6º [...]

§ 4º O Ministério Público acompanhará a ação, cabendo-lhe apressar a produção de provas e promover a responsabilidade, civil ou criminal, dos que nela incidirem, sendo-lhe vedado, em qualquer hipótese, assumir a defesa do ato impugnado ou dos seus autores.

Vale conferir a lição de Geisa de Assis Rodriguessobre o papel do Ministério Público na ação popular:

O que significa ter uma posição ativa em favor do autor popular? Significa produzir as provas necessárias para a demanda, fiscalizar o cumprimento das requisições judiciais de certidões e informações, responsabilizar os que não atenderem aos pleitos judiciais na ação popular, responsabilizar criminalmente aqueles cujos delitos ficarem demonstrados no curso da ação popular, recorrer das decisões que contrariarem o interesse público, aditar a inicial, requerer a liminar de suspensão do ato lesivo, requerer a antecipação de tutela, propor medida cautelar incidental, não recorrer das decisões favoráveis ao cidadão, não pleitear a suspensão da liminar concedida.

Mediante análise do processo, constato ter sido o Ministério Público intimado a manifestar–se apenas à folha 388, quando já finda a instrução processual. Em outras palavras, não houve o acompanhamento da instrução probatória nem a abertura de vista para eventual pedido de produção de provas.

Deve-se frisar o envolvimento de direito indisponível. Tanto é assim que a lei impõe a participação do Ministério Público com abrangência maior. Vale dizer: o fato de não haver se insurgido contra a irregularidade, vindo a oficiar de forma simplesmente opinativa, não convalida a situação jurídica. Cumpre, então, sanear o processo, sob pena de desprezo à ordem jurídica, à organicidade do Direito. Uma coisa é a manifestação final ocorrida, silenciando o Ministério Público quanto ao fato de não haver sido intimado para acompanhar a totalidade da tramitação do processo requerendo o que entendesse cabível, outra é olvidar os parâmetros que o compelem ao abandono do campo do simples parecer.

Também aqui se verifica o desatendimento de formalidade essencial, implicando a inobservância do devido processo legal tão próprio à ação popular. Mais um defeito a ser sanado.

AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DAS ETNIAS INDÍGENAS

Nos termos do artigo 6º da Lei nº 4.717/1965, a ação popular será proposta também contra os beneficiários diretos do ato lesivo. Trata-se, da mesma maneira, de litisconsórcio passivo necessário:

Sendo beneficiário, litisconsorte necessário do ato de provimento que se pretende ineficacizar, é nulo, ‘ab initio’, o processo em que não foi citado para o contraditório e defesa, podendo essa nulidade ser postulada pelo Ministério Público (RSTJ 43/332).

É inegável serem as comunidades indígenas, de início, beneficiárias do ato de demarcação. Tanto são que, consoante o § 3º do artigo 2º do Decreto nº 1.775/1996, mostra-se necessária a participação do grupo indígena envolvido, segundo as formas próprias, em todas as fases do processo de demarcação:

Trecho de acórdão citado por Theotonio Negrão na obra Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, 38ª ed. São Paulo: Saraiva. p. 1119.

§ 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases.

No curso do processo, as comunidades requereram o ingresso na qualidade de litisconsortes. O Plenário, porém, admitiu a intervenção apenas na condição de assistentes.

Confiram trecho do voto do ministro Menezes Direito:

No caso, e considerando que as comunidades indígenas envolvidas, ainda que não citadas como rés, intervieram no processo na qualidade de assistentes, produzindo provas e manifestando-se com os múltiplos argumentos que souberam tão bem apresentar, não se verifica nenhum prejuízo à sua defesa que imponha a desconsideração de todo o processado até aqui.

[...]

Nessa linha, acompanhando o Relator, voto pelo indeferimento dos requerimentos de integração na forma de litisconsórcio necessário, mas defiro as manifestações de todos

na qualidade de assistentes. Diga-se que esse tema já ficou antes assentado em questão preliminar na anterior assentada.

Pois bem, imaginem se a presente ação for julgada procedente, anulando-se o processo demarcatório, não haverá clara nulidade, considerada a ausência da participação dos beneficiários, como litisconsortes? Não é porque o julgamento caminha no sentido da improcedência do pedido que será afastada a observância irrestrita das regras de direito processual, as quais visam, em última análise, a proteger as partes, dando credibilidade ao pronunciamento jurisdicional.

Ante o quadro, faz-se necessária a citação de entidades representativas das cinco etnias existentes na reserva Raposa Serra do Sol, sob pena de nulidade do processo.

AUSÊNCIA DE PRODUÇÃO DE PROVAS

Convém apontar, da mesma forma, ter o relator, por meio do despacho de folha 356, aberto vista às partes para especificação de provas, no prazo de dez dias. Apenas se manifestou a União, afirmando não ter nada a requerer a tal título, preconizando o julgamento antecipado da lide (folha 361). Certidão acostada à folha 362 atesta o silêncio dos autores populares.

Em seguida, à folha 363, o relator abriu vista às partes para alegações finais. O autor popular e o assistente Senador Mozarildo Cavalcanti, que já não haviam apresentado réplica (folha 345), permaneceram silentes também nessa fase processual (folha 388). Ou seja, até o fim da instrução e a abertura do prazo para razões finais (certificada à folha 362 do volume 2 de um processo que contém 51 volumes), as únicas peças processuais trazidas pelos autores populares, defensores dos interesses do Estado de Roraima e dos Municípios, foram a petição inicial e o recurso de agravo dirigido contra decisão do relator indeferindo medida liminar.

Noto estar a tese relativa à argüição da nulidade do processo demarcatório, veiculada na inicial, assentada nas conclusões de:

(a) laudo pericial produzido no âmbito da ação popular ajuizada por Silvino Lopes da Silva e outros (Processo nº 1999.42.00.000014-7), que tramitou perante a 1ª Vara da Justiça Federal em Roraima, não chegando a ter o mérito apreciado por perda de objeto;

(b) documento intitulado “Relatório Parcial da Comissão Temporária Externa do Senado Federal sobre a Demarcação de Terras Indígenas – Área Indígena Raposa/Serra do Sol”.

Eis a conclusão dos peritos do Juízo (folha 6245, volume 24):

O que restou provado com esta Perícia é que a FUNAI apresentou e aprovou um relatório completamente inadequado, incorreto, incompleto, e com vícios insanáveis, para a demarcação da Área Indígena Raposa Serra do Sol, induzindo o Ministro da Justiça ao erro em baixar a Portaria 820/98.

Dessa maneira, mesmo diante de notícia segundo a qual laudo pericial confeccionado a pedido do Juízo Federal de Roraima atestara a existência de nulidades no processo demarcatório, servindo de embasamento para os pedidos dos autores populares, e relatório elaborado pelo Senado da República revelara conclusões no mesmo sentido - e, cumpre acrescentar, a Câmara dos Deputados também assim se pronunciou em documento oficial -, constato não ter sido determinada, no Supremo, a produção de prova pericial para averiguar as nulidades alegadas.

A teor do artigo 130 do Código de Processo Civil, mesmo diante da omissão das partes, compete ao juiz determinar as provas necessárias para a adequada instrução do processo, o que se dirá quando envolvida a coisa pública em extensão inigualável:

Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.

Trago a lição de Luiz Rodrigues Wambier e Evaristo Aragão Santos, em que concluem não poder o exercício dos poderes instrutórios ser considerado mera faculdade do órgão judicante, mas um dever, ante a necessidade de conduzir o procedimento da maneira mais idônea possível, sempre com o intuito de obter a efetiva tutela do direito material:

Existindo nos autos quaisquer elementos (dados em geral ou, mesmo, indícios, enquanto fato provado) que apontem de maneira objetiva (isto é, que não dependam da avaliação subjetiva do juiz, mas surjam nos autos de maneira perceptível a qualquer julgador) para desdobramentos capazes de alterar o rumo do convencimento, sua apuração é medida que se impõe ao órgão judicial. Mesmo porque, não podemos esquecer, está no seu estrito âmbito de atuação a avaliação das provas a partir de todos os “fatos e circunstâncias constantes nos autos, ainda que não alegados pelas partes” (CPC, art. 131).

Esses elementos muitas vezes são descritos como formadores de uma situação de perplexidade do juiz diante do material probatório formado nos autos. O problema é que

tal vocábulo acaba passando a impressão de que se trataria de situação esdrúxula, aberrante mesmo e que, apenas assim, autorizaria sua correção de ofício. Em nosso sentir, no entanto, a existência desses elementos objetivos inexplorados (ou desconsiderados) no contexto fático dos autos até não deixa de ser gerador de alguma perplexidade.

No entanto, para tê-la por configurada (a tal perplexidade), bastará que o julgador se veja “diante das provas contraditórias confusas ou incompletas”. Nada mais exorbitante do que isso.

8 Trecho transcrito a partir de artigo redigido por Luiz Rodrigues Wambier e Evaristo Aragão dos Santos, denominado “Sobre o ponto de equilíbrio entre a atividade instrutória e o ônus da parte de provar”, publicado na obra Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais. São Paulo: Saraiva. 2008. p 162.

Esse poder do juiz apresenta-se diferenciado na ação popular, nos termos da lição de Arruda Alvim, destacado o papel ativo do juiz na produção de provas em demanda dessa natureza:

Nesta lei, examinada a letra b, do art. 7, I, verificamos serem bem amplos os poderes do Juiz. Pois, além de solicitado na petição inicial, e, na defesa, o Juiz tem poderes e outros que se lhe afigurem necessários ao esclarecimento do fato. E temos o texto que outorga, em nome do interesse público e da defesa do patrimônio público, maiores poderes para o juiz, que aqui, no nosso entender, pode agir com maior liberdade, diversamente do que ocorre no CPC. Coloca-se o juiz numa postura mais envergadamente inquisitória.

É induvidosa a necessidade de produção da perícia, prova essa que deveria ter sido determinada de ofício, consideradas a omissão das partes, a falta de atuação do Ministério Público bem como a notícia, na petição inicial, de laudo pericial confeccionado a pedido do Juízo Federal de Roraima e de documento oficial do Senado nos quais apontadas

nulidades no processo demarcatório.

No âmbito do Supremo e especificamente em relação à demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, existe precedente do Plenário, relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto, em que não se acolheu pedido formulado em mandado de segurança, ante a inadequação da via eleita, assentando-se a necessidade de dilação probatória para a delimitação de questões como o tamanho das fazendas dos impetrantes, a data do ingresso deles nas terras em causa, a ocupação pelos índios e o laudo antropológico.

Ação Popular. Revista de Processo, 32/163. Citado por RODRIGUES, Geisa de Assis. Da Ação Popular. Texto incluído na obra Ações Constitucionais. Organizada por Fredie Didier Jr. Jus Podivm: Rio de Janeiro. 2006. p. 243-244. Cita-se, ainda, o seguinte acórdão: Processual Civil. Ação Popular. Requisição de Documentos. 1 – Na ação popular, ao contrário do procedimento do mandado de segurança, cabe ao juiz requisitar de ofício ou a requerimento do autor popular os documentos necessários à comprovação dos fatos alegados na inicial, independentemente de prova de recusa da repartição pública ou da autoridade que os detém. 2 – Recurso parcialmente provido. 3. Decisão que se reforma em parte. (TRF – 1ª Região, Agravo de Instrumento – 01250107, 1ª T., DJU: 20/03/1997, pg. 16314, Juiz Paluto Ribeiro).

Confiram:

MANDADO DE SEGURANÇA. HOMOLOGAÇÃO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS RAPOSA SERRA DO SOL. IMPRESTABILIDADE DO LAUDO ANTROPOLÓGICO. TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS POR ÍNDIOS. DIREITO ADQUIRIDO À POSSE E AO DOMÍNIO DAS TERRAS OCUPADAS IMEMORIALMENTE PELOS IMPETRANTES. COMPETÊNCIA PARA A HOMOLOGAÇÃO. GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ADMINISTRATIVO. BOA-FÉ ADMINISTRATIVA. ACESSO À JUSTIÇA. INADEQUAÇÃO DA VIA PROCESSUALMENTE ESTREITA DO MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.

A apreciação de questões como o tamanho das fazendas dos impetrantes, a data do ingresso deles nas terras em causa, a ocupação pelos índios e o laudo antropológico (realizado no bojo do processo administrativo de demarcação), tudo isso é próprio das vias ordinárias e de seus amplos espaços probatórios.

[...]

(Mandado de Segurança nº 25.483-1/DF, relator ministro Carlos Ayres Britto, Tribunal Pleno, Diário da Justiça de 14 de setembro de 2007)

Abaixo, transcrevo trecho do voto condutor do julgamento:

[...]

16. Com efeito, as alegações de que as terras ocupadas pelos impetrantes estão cercadas por terras indígenas, mas lhe são independentes; o Laudo Antropológico não se pautou pelo rigor científico necessário; os impetrantes entraram na posse das terras na ausência de índios, tudo isso é questão a ser discutida nas ações ordinárias. Noutro modo de dizer as coisas, os fundamentos da inicial que giram ao redor da extensão das fazendas, do ingresso dos impetrantes nas terras, da ocupação pelos índios e do laudo antropológico (realizado no bojo do processo administrativo de demarcação) são próprios das vias ordinárias e de seus amplos espaços probatórios.

17. Nesse mesmo ritmo argumentativo, tenho que a alegação de que o procedimento de demarcação das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol ofende o direito adquirido às áreas possuídas de boa-fé e com justo título também implica o olhar atento do exegeta para um quadro fático extremamente impreciso. Afinal, fixar o perímetro das terras pleiteadas exige o ingresso num vasto campo empírico. Campo, esse, timbrado por documentos, laudos periciais, supostos títulos possessórios e testemunhas, por exemplo. Sendo assim, naquilo que toca as questões até aqui aventadas, não conheço da impetração, dada a evidente inadequação da via eleita.

[...]

Em última análise, há clara contradição entre as conclusões dos referidos julgados. No primeiro, o Tribunal indeferiu a segurança assentando a necessidade de farta instrução probatória na via ordinária para solução da controvérsia e, na ação popular, seara própria, deixou de determinar a produção de qualquer prova, seja pericial ou testemunhal, apontando o tema como exclusivamente de Direito. Assim não o é. Ao que tudo indica, o relator de ambos os processos mudou de entendimento sem informar, ao menos de modo explícito e a convencer, a razão. Mas soberano é o Plenário e não qualquer dos integrantes por mais douto que seja.

Assentada de maneira definitiva a orientação do Supremo no caso em exame - estando em jogo tema impregnado da maior importância jurídica, econômica e social, presente a determinação de imediata retirada de todos os cidadãos não-índios das terras demarcadas, brasileiros ou não, tal como consta no voto do relator -, a conclusão implicará, na prática,

a impossibilidade de os interessados terem apreciadas as pretensões arguidas em outros processos, perdendo, sem serem ouvidos, o direito ao uso de todas as ferramentas de prova.

Impõe-se a colheita de prova, inclusive a testemunhal, sobretudo para identificar as razões pelas quais somente a antropóloga Maria Guiomar de Melo subscreveu o laudo antropológico, não havendo a anuência dos demais integrantes do Grupo Técnico constituído. Também cumpre verificar se, de fato, as pessoas nomeadas para compor o Grupo Técnico detinham, ou não, conhecimento especializado.

Acresce ter o ministro Menezes Direito solicitado, junto à FUNAI, a elaboração de um mapa, o qual passou a constituir parte integrante do voto proferido, com a indicação da área que os índios utilizariam para a subsistência.

Confiram:

Um mapa elaborado pela FUNAI a meu pedido, e que junto a este voto, passando a constituir parte integrante do mesmo, mostra claramente a área, com base em círculos de raio de 5km, que, a partir de cada aldeia, os seus habitantes utilizariam para a sua subsistência no sistema de coivara; anoto que se trata tão somente do segundo círculo concêntrico na idéia do Ministro Jobim, já suficiente para preencher a quase totalidade da terra indígena.

Apesar de elogiar a postura do ministro Menezes Direito, no que formulou pedido de vista - havendo os demais ministros aguardado - pretendendo instruir o processo com elemento probatório adicional a auxiliar no exame da legitimidade das conclusões do processo de demarcação, olvidado, até mesmo, o critério da oportunidade da prova, considero ser necessária, ao menos, a intimação das partes para se manifestarem sobre a prova produzida. Não pode a Corte, durante o julgamento, determinar a produção e juntada de novas provas ao processo, sem que as partes tenham o direito de se pronunciar.

Por fim, transcrevo trechos do voto do ministro Nelson Jobim, em questão de ordem na Ação Cível Originária nº312-1/BA, quando se requereu a autorização para promover inspeção judicial na área sobre a qual se discute a natureza de terra indígena (folha 12 do voto):

[...]

O reconhecimento e fixação de limites da afirmada TERRA INDÍGENA são pressupostos para o juízo de procedência, total ou parcial, desta ação. Se for TERRA INDÍGENA, os títulos dos RÉUS serão nulos nos estritos limites do que abrangerem aquela área. Na parte que, eventualmente, não incluir TERRA INDÍGENA, os títulos remanescem íntegros.

Assim, para se desconstituir os títulos, impõe-se o prévio conhecimento, como limites precisos, da TERRA INDÍGENA. Ser, ou não, TERRA INDÍGENA é premissa para o juízo nulificante.

[...]

Sr. Presidente, como foi posto pelo eminente Ministro Maurício Corrêa, tem-se que os atos físicos da década de 30, com relação à demarcação da área indígena que havia sido autorizada por uma lei estadual ao Governo do Estado da Bahia, foram realizados, mas não se consumou a demarcação com o necessário título de definição da área. À época, eram feitas escrituras públicas do Estado à comunidade indígena ou ao Serviço de Proteção ao Índio.

Em 1967, a Constituição passou o domínio das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios para a União, assegurando aos índios o seu usufruto vitalício. A ação ajuizada pela FUNAI visa a anular escrituras públicas, outorgadas pelo Estado da Bahia, em relação àquelas terras, porque, em determinado momento, o governador subseqüente abandonou a hipótese de transferi-las aos índios e titulou várias pessoas. Na verdade, com a lei estadual, o antigo Serviço de Proteção ao Índio apropriou-se da área e passou a arrendá-la para brancos, que a ocuparam. Depois, os governadores subseqüentes foram titulando esses brancos e acabaram não demarcando a área. A pergunta, posta por mim, na questão de ordem, acompanhado pela Ministra Ellen Gracie e pelo Ministro Maurício Corrêa, é esta: não tendo havido a demarcação, poderia a ação continuar, uma vez que ela visa à anulação da escritura? A minha conclusão é a de que as terras são demarcáveis porque são indígenas, não passam a sê-lo após a demarcação. É possível, portanto, que, por meio dos atos subseqüentes, o Tribunal possa examinar se se constituem em área indígena para julgar procedente, ou não, a ação. Este foi o sentido da questão de ordem, que tem um aspecto prático.

Não gostaria de tomar providências complicadas no sentido de eventual inspeção judicial para, depois, o processo cair na preliminar. Então, gostaria de resolver a preliminar para que o Ministro-Relator possa promover inspeções judiciais a fim de definir a situação e trazer a julgamento a questão de mérito.

Mostra-se incontroverso que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições – artigo 231 da Constituição Federal –, cabendo-lhes a posse permanente, tal como ressaltado nos votos já proferidos.

Então, o tema não é estritamente de Direito, mas de fato, a exigir, ante variadas circunstâncias existentes, a abertura de complexa dilação probatória, não fosse a alegação de vícios considerada a peça reveladora da demarcação administrativa. A propriedade da máxima segundo a qual sem fatos não há julgamento, sendo que, até aqui, estes permanecem controvertidos, surge manifesta. Há de definir-se, ficando estreme de dúvidas, as terras realmente ocupadas - expressão da Constituição - pelos indígenas no já um tanto quanto longínquo ano de 1988, marco temporal para assentar-se a insubsistência de títulos de propriedade e posses de terceiros, esclarecendo-se as situações fáticas e jurídicas apanhadas pela Carta Federal.

AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DOS DETENTORES DE TÍTULO DE PROPRIEDADE – RELEVÂNCIA PARA A DEFINIÇÃO DE TODAS AS QUESTÕES ENVOLVIDAS NA DEMARCAÇÃO

Outro ponto importante a ressaltar é a eventual abrangência da coisa julgada – artigo 18 da Lei nº 4.717/65 - considerados os detentores de títulos de propriedade na área demarcada, presente a natureza da ação popular. Eis o que consignou o ex-ministro Ilmar Galvão, em memorial apresentado em favor de Lawrence Manly Harte e outros. Noto terem estes sido admitidos como assistentes pelo Plenário, quando do julgamento de questão de ordem, na sessão em que o relator proferiu o voto:

4. A participação, no feito, dos autores do presente memorial

Sabidamente, o objeto da ação popular é o ato lesivo ao patrimônio público ou de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. É o que se lê no inciso LXXIII do artigo 5º da Constituição. Em sendo assim, o requerimento de ingresso dos autores do presente memorial na relação processual só pode ser entendido como tendo tido objetivo de formarem eles como parceiros e coadjuvantes dos autores da ação na defesa do interesse do Estado de Roraima, sob os aspectos comercial, econômico e social, secundado-lhe, por isso, as alegações por eles expendidas na inicial. Não podiam agir de outro modo, quando pacífico que a ação popular não é meio idôneo para defesa de interesses individuais particulares. Donde a ilação obrigatória de que, eventuais alusões a interesses próprios, não foram feitas senão em caráter obiter dictum, não configurando causa de pedir. De outra parte, a ação popular não é espécie de actio duplex, em que autor, litisconsortes e assistentes, podem sair tosquiados, como acontecerá neste caso com os ora Requerentes, acaso prevaleça o voto sob enfoque, na parte em que declarou nulos os seus títulos de domínio e de posse.

É certo que a Constituição, no § 6º do art. 231, declara nulos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas da CF; e não menos certo que, na conformidade do disposto no art. 168, parágrafo único, as nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos, mas tão-somente quando as encontrar provadas.

Ora, inexistindo dúvida de que os ora Requerentes não poderiam utilizar-se da ação popular para defesa de seus próprios interesses, parece óbvio, por igual, que não poderão ter seus interesses nela apreciados julgados, donde a conclusão inarredável de que o voto sob enfoque não poderá prevalecer, data vênia, na parte em que laborou extra petita.

Na verdade, para defesa de seus interesses como senhores de terras que a Constituição de 88 encontrou isentas da presença de índios, os autores do presente memorial ajuizaram as competentes ações perante o MM.

Juízo da Seção Judiciária de Roraima, de onde, como já dito, foram avocadas por arrasto para essa Excelsa Corte, onde se acham paralisadas, depois da cassação da medida liminar de manutenção de posse deferida pelo MM. Juiz Federal de Roraima.

É no bojo de tais ações que deverão eles produzir a exuberante prova que têm em mãos, de que não ocupam porções de terra encravadas em área indígena, mas situadas fora de seus limites, ao sul e sudoeste. Essa prova, repita-se, pelas razões expostas, não poderia ter sido produzida no âmbito da ação popular, onde foi invocada tão-somente a título de ilustração.

Decisão que conclua em sentido contrário a esse entendimento, data venia, além de ofensiva ao princípio da vedação do julgamento extra petita, não poderá produzir efeito da coisa julgada oponível aos ora requerentes, justamente pela circunstância apontada, de não terem tido a oportunidade de oferecer a prova de seu direito, que não poderia ser alegado senão nas ditas ações, previstas em nosso sistema jurídico-processual, já anteriormente ajuizadas.

II. O PEDIDO

Em face de todo o exposto, esperam os Requerentes que Vossa Excelência se digne de julgar a ação procedente, ou, na hipótese de acompanhar, em sua conclusão, o voto do eminente Relator, se digne de deixar ressalvado que a decisão proferida não valerá como coisa julgada, para efeito de prejudicar as ações individuais já propostas e as cujo ajuizamento pelos ora requerentes, venha tornar-se necessário.

Faz-se necessário trazer à baila o que constou na parte dispositiva do voto do ministro Carlos Ayres Britto, proferido quando do exame da Reclamação nº 3.331-7/RR pelo Plenário, em que fixada a competência originária do Supremo para o julgamento das ações envolvendo o conflito Raposa Serra do Sol:

14. Com esses fundamentos, voto pela procedência desta reclamação para o fim de reconhecer:

a) a competência desta Corte Suprema quanto ao processo e julgamento dos seguintes feitos: Ação Popular nº 2005.42.00.000724-2, Ação Civil Pública nº 2005.42.00.000139-2 e Ações Possessórias nºs 2005.42.00.001094-0, 2005.42.00.001095-3, 2006.42.00.000098-7, 2006.42.00.000737-0, 2006.42.00.000739-7 e 2006.42.00.000757-5;

b) a competência desta Suprema Corte para processar e julgar as Ações Possessórias nºs 2004.42.00.002115-0, 2004.42.00.001403-5, 2004.42.00.001459-0, 2004.42.00.001462-8, 2004.42.00.01591-4, 2004.42.00.001590-0, porquanto originárias da Ação Popular nº 9994200000014-7.

15. Voto, por derradeiro, pela prejudicialidade dos agravos regimentais interpostos no bojo desta reclamatória.

Conforme levantamento, de todos os processos mencionados, apenas o de número 2004.42.00.001459-0, autuado no Supremo como Petição nº 3.713, já foi apreciado, tendo sido assentada a perda de objeto.

Em outras palavras, aguardam análise no Supremo várias ações questionando o procedimento demarcatório, nas quais aduzidos os mais diversos enfoques. Não restam dúvidas, porém, de que a conclusão adotada na presente ação norteará a atuação da Corte nas demais. Proclamando-se a valia da demarcação que se diz viciada, praticamente ficará frustrada a apreciação das causas de pedir arguidas e dos pedidos formulados nas outras demandas.

Isso é tão certo que, na parte dispositiva do voto do relator, como já mencionado, noticia-se a revogação da liminar deferida na Ação Cautelar nº 2.009-3/RR bem como a imediata retirada de todos os indivíduos não-índios das terras em disputa10. Além disso, sem o necessário exame individualizado, viabilizado à exaustão o exercício do direito de defesa, declara-se a nulidade dos títulos de propriedade. Tudo isso, repito, sem a oitiva dos interessados. Tudo isso, volto a frisar, em uma ação que tem como objeto apenas anular ato lesivo ao patrimônio público e não possui natureza dúplice, como, por exemplo, a ação consignatória ou a possessória.

Indago: à decisão será conferida extensão maior ou se ficará na simples improcedência do pedido inicial, deixando-se de determinar, no campo constitutivo negativo, providências das mais variadas matizes? E mais, no relatório da Câmara dos Deputados (folha 6562) – notícia confirmada no Despacho nº 80, de 20 de dezembro de 1996, posteriormente revogado, do então Ministro da Justiça Nelson Jobim -, encontra-se consignado estarem incluídas, na área da reserva, fazenda cujo domínio foi assegurado em sentença judicial já preclusa na via da recorribilidade. Ora, a ação popular tem o condão de simplesmente rescindir aquele julgado?

Transcrevo trecho do voto do relator: ... II – marco da tradicionalidade da ocupação. [...] O termo “originários” a traduzir uma situação jurídico-subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios.

A ciência dos interessados para manifestarem-se quanto ao interesse, ou não, na demanda, possibilitando-lhes participar da instrução probatória, deveria ter sido determinada de ofício, considerada a singularidade do pronunciamento do Supremo. É a figura da intervenção iussu iudicis expressamente prevista no artigo 91 do Código de Processo Civil de 1939, já admitida pela doutrina e por este Tribunal, e que se encontra presente nos artigos 47, parágrafo único, 48 e 49 do Código Buzaid – o de 1973:

Art. 91. O juiz, quando necessário, ordenará a citação de terceiros, para integrarem a contestação. Se a parte interessada não promover a citação no prazo marcado, o juiz absolverá o réu da instância.

.................................................................

Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo.

Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que promova a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto o processo.

Art. 48. Salvo disposição em contrário, os litisconsortes serão considerados, em suas relações com a parte adversa, como litigantes distintos; os atos e as omissões de um não prejudicarão nem beneficiarão os outros.

Art. 49. Cada litisconsorte tem o direito de promover o andamento do processo e todos devem ser intimados dos respectivos atos.

Sobre o tema, transcrevo ensinamento de Moacyr Lobo da Costa11:

Quando, em razão da conexidade substancial, o juiz julgar oportuna a presença do terceiro no processo, poderá determinar a sua intervenção, com o objetivo de tutelar o seu interesse e obstar a possibilidade de decisões contraditórias em ação futura.

Considera-se ter o ministro Celso de Mello utilizado esse instituto quando, de ofício, na instrução do Mandado de Segurança nº 24.831-9/DF, determinou a notificação dos Líderes do Bloco de Apoio ao Governo, do PMDB e do PPS para prestarem informações. O ministro fundamentou tal postura consignando buscar o ato afastar objeções de ordem formal que pudessem, eventualmente, inviabilizar o conhecimento da ação de mandado de segurança, frustrando-se a definição pelo Supremo, naquele processo, de um tema da maior importância jurídico-institucional, qual seja, o direito das minorias legislativas à investigação parlamentar, à luz do princípio democrático. Assim como ocorre agora, a matéria se apresentava de extrema relevância, tendo o Tribunal, ao fim, assegurado os direitos da minoria parlamentar de ver constituída, organizada e em funcionamento comissão parlamentar de inquérito.

A admissão como assistentes, após a conclusão da instrução, não supre a necessidade de se assegurar o devido processo legal, com as ferramentas a ele inerentes, também aos

interessados.

COSTA, MOACYR LÔBO. A Intervenção Iussu Iudicis no Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva. 1961. p. 157.

Então, cumpre sanear o processo, providenciando-se:

a) a citação das autoridades que editaram a Portaria nº 534/05 e o Decreto que a homologou;

b) a citação do Estado de Roraima e dos Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia;

c) a intimação do Ministério Público para acompanhar, desde o início, o processo;

d) a citação de todas as etnias indígenas interessadas;

e) a produção de prova pericial e testemunhal;

f) a citação dos detentores de títulos de propriedade consideradas frações da área envolvida, em especial dos autores de ações em curso no Supremo.

Que o Colegiado não silencie sobre essas matérias!

C) DAS CAUSAS DE PEDIR ARROLADAS NA INICIAL DA AÇÃO POPULAR

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Cabe ter em mente estar, para a doutrina constitucional, entre os princípios de interpretação da Carta, o da eficácia integradora. Eis o ensinamento de José Joaquim Gomes Canotilho quanto ao tema:

Ainda muitas vezes associado ao princípio da unidade e na sua formulação mais simples significa precisamente isto: na resolução dos problemas jurídico-científicos deve dar-se primazia aos critérios ou pontos de vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política. Como tópico argumentativo, o princípio do efeito integrador não assenta numa concepção integracionista de Estado e da sociedade (conducente a reducionismos, autoritarismo e transpersonalismos políticos), antes arranca da conflitualidade constitucionalmente racionalizada para conduzir a soluções pluralistas (antagonicamente) integradoras.

Atentem para a íntegra dos principais dispositivos constitucionais que tratam da proteção aos índios:

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4ª ed. Coimbra: Almedina. p. 162.

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Vale, ainda, transcrever o § 2º do artigo 20 do Diploma Maior:

Art. 20.

[...]

§ 2º A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.

É certa a necessidade de interpretação dos dispositivos que conferem proteção aos índios em conjunto com os demais princípios e regras constitucionais, de maneira a favorecer a integração social e a unidade política em todo o território brasileiro. O convívio harmônico dos homens, mesmo ante raças diferentes, presente a natural miscigenação, tem sido, no Brasil, responsável pela inexistência de ambiente belicoso.

Na obra Teoria do Estado, em capítulo intitulado “A crise da integridade do Estado: A ‘Mexicanização’ da Amazônia e o Assalto à Soberania”, Paulo Bonavides traça comparação analógica entre a situação do Brasil contemporâneo com a do México no século XIX, em que tal país perdeu grande parte do original território para os Estados Unidos. Reproduzo trecho de capítulo em que se aborda a questão indígena:

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6ª Ed. São Paulo: Malheiros. p.392-393.

[...]

8. O assalto à soberania e a ocupação dissimulada da Amazônia, acobertada pela proteção das reservas indígenas Hoje nos países em desenvolvimento desconfia-se de que camufladamente grande parte daquelas sociedades não governamentais e missões religiosas desempenham a mesma função do vilipêndio; na rota da ocupação fingem-se de zelo sacerdotal pela causa indígena ou se credenciam como cientistas do solo, da fauna e da flora. São a ponta de lança da invasão futura. Buscam desse modo conhecer melhor nossas riquezas com o propósito de arrebatá-las depois, consoante já o fizeram nos casos do México e da Colômbia, vítimas da maior tragédia imperialista dos últimos cento e cinqüenta anos na América Latina.

Não é sem razão que a demarcação das reservas indígenas, ocorrendo mediante sub-reptícia pressão internacional, em verdade não correspondente aos interesses do nosso índio, mas aos desígnios predatórios da cobiça imperialista, empenhada já na ocupação dissimulada do espaço amazônico e na preparação e proclamação da independência das tribos indígenas como nações encravadas em nosso próprio território, do qual se desmembrariam. Essa demarcação desde muito deixou de ser uma questão de proteção ao silvícola para se converter numa grave ameaça à integridade nacional.

A esse respeito o mais alarmante vem dos Estados Unidos onde, na Câmara dos Representantes, se legisla já, com ambigüidades, sobre a proteção dos povos indígenas do Terceiro Mundo. Com efeito, em 22 de março de 1991, o deputado Benjamin A. Gilman, de Nova York, apresentou àquela Casa um projeto legislativo que oficialmente se intitula “lei para proteger os povos indígenas do mundo inteiro.”

Só o título vale para demonstrar a sem-cerimônia, a arrogância e a falta de autoridade com que esse parlamentar estrangeiro, deslembrado do extermínio de seus moicanos e peles-vermelhas, intenta invadir na questão indígena a competência dos parlamentos das nações em desenvolvimento ou subdesenvolvidas.

O [O projeto de lei para proteção das populações indígenas internacionais de 1991] “International Indigenous Peoples Protection Act of 1991” tramita por distintas comissões daquela Câmara e determina ao Secretário de Estado e ao Diretor da Agência Internacional para o Desenvolvimento que subordinem a política externa dos Estados Unidos a essa esdrúxula proteção e sobrevivência cultural dos povos indígenas do mundo

inteiro.

Suspeita-se que seja o primeiro grande passo legal e preparatório para legitimar depois, interna e externamente, intervenções como aquela que ontem desmembraram no istmo da América Central o Panamá da Colômbia, e fizeram nascer a república de Noriega, ou anexaram o Texas à União Americana, a expensas do México.

Não é de espantar, portanto, se amanhã os missionários estrangeiros da Amazônia, até mesmo com a cumplicidade das Nações Unidas, proclamarem na reserva indígena, que cresce de tamanho a cada ano e já tem a superfície de um país de extensão de Portugal, uma república ianomâmi, menos para proteger o índio do que para preservar interesses das superpotências.

Incalculáveis riquezas jazem na selva amazônica e a proteção da cultura indígena trouxe a presença ali de cavaleiros que se adestram para segurar as rédeas de um novo e estranho Cavalo de Tróia. O que parece à primeira vista apreensão infundada ou mero pesadelo de Cassandras nacionalistas, bem cedo, se não atalharmos o mal pela raiz, mediante vivência efetiva nas fronteiras do Norte e Oeste, se tornará um fato consumado, uma tragédia, e como todas as tragédias, algo irremediável. A consciência da nacionalidade, picada de remorso, não saberia depois explicar às gerações futuras com honra e dignidade tanta omissão e descaso. O assalto à soberania está pois em curso. É hora de pensar no Brasil!

A respeito da matéria, Ives Gandra Martins, em livro escrito a quatro mãos com o saudoso Celso Ribeiro Bastos, assim se manifestou:

MARTINS, Ives Gandra da Silva e BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. Vol. 8. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 1.046.

Por outro lado, as organizações internacionais – e a matéria já tem sido denunciada – procuram tratar o território como indígena, mais do que brasileiro, razão pela qual, em eventual internacionalização da Amazônia para imposição da política externa, os verdadeiros titulares da terra seriam os indígenas e não os brasileiros. Dissociando os indígenas do povo brasileiro e suas terras do Estado brasileiro, tais organizações pretendem tornar o problema indígena do Brasil um problema de preservação dos costumes primitivos, que é dever da humanidade, tornando mais fácil, à evidência, a exploração de dez por cento do território nacional, reservado aos duzentos e cinqüenta mil remanescentes da população indígena – propugnando por acordos convenientes a tais grupos mais do que a interesses do País.

Mais recentemente, em 21 de dezembro de 2008, veio novamente a alertar sobre a matéria, fazendo-o presente a importância deste histórico julgamento, em artigo publicado, no jornal Folha de São Paulo, sob o título “11 Cidades de São Paulo”:

...185 milhões de brasileiros podem andar livremente só por 87% do País, mas aos índios garante-se o direito de percorrer 100% do Brasil.

Ressaltou:

Um território correspondente a 11 cidades de São Paulo (que tem quase 11 milhões de habitantes) – o que valeria dizer, se habitado nos moldes dessa metrópole, a mais de 110 milhões de brasileiros – foi praticamente assegurado pelo Supremo Tribunal Federal para apenas 18 mil índios.

Também o Deputado Aldo Rebelo – que integra o PC do B – e foi Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Segurança Nacional da Câmara dos Deputados, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, revelou grande preocupação com o pano de fundo do conflito ora em exame.

Entrevista veiculada no jornal O Estado de S. Paulo, de 25 de novembro de 2007, trecho transcrito em “Tribalista Indígena – Ideal Comum no Missionário para o Brasil no Século XXI”, de Plínio Correia de Oliveira.

Ao ser indagado se era alarmista falar da cobiça internacional sobre a Amazônia, respondeu:

As manifestações em favor da submissão da Amazônia a uma espécie de tutela internacional só podem causar repulsa aos brasileiros com o mínimo de dignidade. As declarações e os estudos cobiçando a Amazônia são reais, desde o século XVII. Dom Pedro II, numa carta a Condessa de Barral, já explicava por que não atendeu ao pedido de um conterrâneo meu, então deputado Tavares Bastos, para abrir a calha da Amazônia à navegação estrangeira. Se fizesse isso, disse Dom Pedro, iríamos ter protetorados na Amazônia iguais aos que foram criados na China pelas potências estrangeiras. Sabia o que estava em jogo.

Sobre a questão indígena, disse:

Fui a uma reserva ianomâmi, perto de um pelotão de fronteira do exército, e visitei uma maloca. Deparei-me com umas cinqüenta famílias convivendo dentro de um ambiente fechado, de penúria. Muitos fogos dentro da maloca para as famílias assarem bananas e mandiocas, muita poluição, muita fuligem, um ambiente com incidência muito grande de doenças infecciosas. Até tuberculose. Fui recepcionado por uma moça de uma organização não-governamental, a ONG Urihi.

Perguntei por que não se puxava do pelotão água e luz para dentro da comunidade indígena, o que daria mais conforto à população. A moça da ONG disse que não, que isso ia deformar o modo de vida dos índios. Nessa visita, o comandante militar que estava comigo não pôde entrar na área indígena. Um grupo de crianças jogava futebol, e eu joguei um pouco com elas. Comentei com a moça da ONG: Pelo menos o futebol é um fator de integração, pois todos torcemos pela mesma seleção. A moça me respondeu: Não. O senhor torce pela seleção brasileira e os índios torcem pela seleção deles. Nada mais falei e nada mais perguntei.

Continuou, então, quanto ao sintoma revelado pelo quadro: “Vi que havia ali uma incompreensão. Em outro município perto do Pico da Neblina, as ONG’s barraram, com a ajuda do Judiciário, uma construção do exército. Só depois que a decisão foi revogada na justiça é que o exército pôde fazer a obra”.

Questionado acerca da existência de índios que desejariam conviver com os não-índios, afirmou:

Uma parcela dos antropólogos defende, com razão, que a cosmogonia dos índios, a visão de seu surgimento e da evolução do universo, é incompatível com a convivência dos brancos e seus costumes. O problema em Roraima é que os índios já estão – de certa forma - integrados. As meninas índias de quinze, dezesseis anos não querem viver mais da pesca, da coleta, não querem andar pela floresta com roupas tradicionais. A aspiração é ter uma vida social, vestir-se como se veste uma adolescente. O isolamento para essas pessoas é uma ameaça, é a perda da possibilidade desta convivência. A cosmogonia tem valor para as populações que não tiveram contato com os não-índios.

A seguir, indagado sobre a essência do problema do conflito em Roraima na reserva Raposa Serra do Sol, fez ver:

Nós reduzimos o problema a um duelo de pontos de vista sobre se a demarcação contínua é certa ou errada. O certo é que a situação expõe razões que, se consideradas isoladamente, deformam o todo. O que nós queremos? Impor uma derrota aos índios que reivindicam a demarcação contínua? Queremos derrotar os que defendem a demarcação em reservas ilhadas? Simplesmente corresponde à verdade dizer que há ali, na região, apenas meia dúzia de arrozeiros.

Quem já esteve lá – e eu estive lá mais de uma vez – e quem leu o relatório da Comissão Externa da Câmara sabe e viu como foram construídos aqueles municípios dos não-índios em Roraima. Tem gente que chegou lá no século XIX e no início do século passado... Pior: o exército costuma ser barrado quando quer entrar numa reserva.

Quanto ao paradoxismo, quanto à questão geopolítica, asseverou:

Há populações na região da reserva Raposa Serra do Sol que vivem ali muito antes de parcela das populações indígenas que atravessaram as fronteiras vindas de guerras tribais do Caribe. Creio que devemos receber e acolher essas populações indígenas juntamente com as populações indígenas que já existiam no Brasil. Mas devemos acolher também, os brasileiros não-índios que ali chegaram há muitos anos e ali construíram suas vidas. Como é que nós podemos simplesmente, em um processo de demarcação, declarar a extinção desses municípios, que é o caso do município de Normandia, que é de 1904, Pacaraima e mesmo Uiramutã. O de Uiramutã, nós conseguimos retirar da lista de extinção em meio a uma negociação difícil. As pessoas tinham ali as suas raízes, a sua infância, suas famílias, sua história. A prefeita de Uiramutã me contou que o avô dela chegou ali em 1908. Como é que nós vamos promover o desterro dessa população? A decisão embute um erro geopolítico. Quem não considera isso um problema grave não está considerando o conjunto do problema. Nós não podemos buscar a solução para o conflito com a exclusão de uma das partes.

Aliás, é importante ter presente o trabalho desenvolvido por Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em ecologia e Chefe-Geral da Embrapa Monitoramento por Satélite, quanto à disponibilidade de terras para ampliação da produção de alimentos e de energia, para a reforma agrária, para o crescimento das cidades e para a instalação de obras de infraestrutura no Brasil. Fez ver que:

Segundo pesquisa realizada pela Embrapa Monitoramento por Satélite, em termos legais, apenas 29% do País seria passível de ocupação agrícola. Cerca de 71% do território está legalmente destinado a minorias e a proteção e preservação ambiental. Como na realidade mais de 50% do território já está ocupado, configura-se um enorme divórcio entre a legitimidade e a legalidade do uso das terras e muitos conflitos.

Consignou, então:

Nos últimos anos, um número significativo de áreas foram destinadas à proteção ambiental e ao uso exclusivo de algumas populações, enquanto uma série de medidas legais restringiu severamente a possibilidade de remoção da vegetação natural, exigindo sua recomposição e o fim das atividades agrícolas nessas áreas. A demanda ambiental para a criação de novas UCS [unidades de conservação], corredores ecológicos, áreas de restauração ecológica e conservação prioritária da biodiversidade visa quase três milhões de quilômetros quadrados. A demanda de terras para colonização, assentamento e reforma agrária é da ordem de dois milhões e novecentos mil quilômetros quadrados. A demanda para criação e ampliação de terras indígenas situa-se entre cinqüenta e cem mil quilômetros quadrados. A demanda de áreas para quilombolas chegaria a duzentos e cinqüenta mil quilômetros quadrados. A demanda agrícola para expansão de alimentos e energia até 2018, mesmo com a conservação de pastagens em áreas agrícolas e ganhos de produtividade, situa-se entre cem mil e cento e cinqüenta mil quilômetros quadrados. Essa demanda adicional representa quase seis milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados, uma área equivalente à soma dos territórios da Argentina, Bolívia, Uruguai, Peru e Colômbia. Além disso, há de contar-se as demandas do crescimento das cidades, da infra-estrutura viária, industrial e energético-mineradora, a exemplo da implementação das obras do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. É fisicamente impossível conciliar o uso atual e atender à totalidade das demandas futuras.

Ainda há mais. Repetindo o que veiculei durante o exame da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.399-3/AM, relembro as palavras de Cristovam Buarque sobre a Amazônia, quando o Senador da República referiu-se, ainda que indiretamente, ao tema:

Durante debate recente em uma Universidade, nos Estados Unidos, o ex-governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque, do PT, foi questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia. O jovem introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Segundo Cristovam, foi a primeira vez que um debatedor determinou a óptica humanista como o ponto de partida para a sua resposta:

De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso. Como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a Humanidade. Se a Amazônia, sob uma ótica humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço. Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.

Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar que esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país. Não faz muito, um milionário japonês decidiu enterrar com ele um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado. Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a Humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.

Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil. Nos seus debates, os atuais candidatos a presidência dos EUA têm defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola.

Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver. Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa.

Também vale registrar que, em 1987, o professor Plínio Correia de Oliveira, autor de “Tribalismo Indígena”, diante dos trabalhos de elaboração da Carta de 1988, advertiu:

O projeto de constituição, a adotar-se em uma concepção tão hipertrofiada dos direitos dos índios, abre caminho a que se venha a reconhecer aos vários agrupamentos indígenas uma como que soberania diminutae rations. Uma autodeterminação, segundo a expressão consagrada. (Projeto de constituição angustia o país, editora Vera Cruz, São Paulo, 1987, página 182 e página 119 da obra citada).

Proféticas palavras tendo em conta, até mesmo, o fato de o Brasil, em setembro de 2007, haver concorrido, no âmbito da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, para a aprovação da Declaração Universal dos Direitos dos Indígenas. Mesmo diante de onze abstenções e quatro votos contrários – Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália -,sendo que a Colômbia foi o único país ibero-americano que não votou a favor, abstendo-se, o Brasil, outrora em oposição, veio a aderir. Segundo cláusulas do instrumento, o direito à terra é um dos mais importantes, não podendo acontecer ação alguma em terras indígenas sem consentimento prévio, afastadas as operações com fins militares ou a utilização como depósito de resíduos tóxicos. Mas a problemática maior está na cláusula reveladora da autodeterminação dos povos indígenas, o que sugere a vinda à balha de independência mitigadora da soberania nacional. No caso presente, tudo isso ocorre a alcançar espaço territorial brasileiro que já foi alvo de disputa com a Venezuela – o norte de Roraima.

Por isso mesmo, o comandante da Amazônia, General Heleno, indagado sobre a cobiça internacional, afirmou:

O Estado de S. Paulo, de 25 de novembro de 2007.

Essa é uma questão que extrapola o componente militar. A cobiça internacional não se manifesta por ações explícitas de força. Ela age de forma sub-reptícia, pouco transparente e dissimulada. Fica difícil entender por que pouquíssimas ONGs dedicam-se a socorrer a população nordestina enquanto centenas delas trabalham junto às populações indígenas. Algumas, ao que parece, investem milhões de dólares na região. Não se trata de uma questão de governo, mas uma questão de estado, uma questão de soberania.

Sim, é preocupante haver tantos olhos internacionais direcionados à Amazônia enquanto população carente, como a nordestina, não conta com o apoio desejável. A questão veio a ser escancarada em 8 de dezembro de 2008, quando o mesmo jornal, O Estado de S. Paulo, compromissado com o destino da nação, noticiou que aguardava assinatura do Presidente da República decreto restringindo a entrada de ONGs e missionários em terras indígenas. Em chamada, na publicação, apontou-se que:

As iniciativas do Governo Federal para ter maior controle sobre as organizações não-governamentais que atuam na Amazônia são uma espécie de resposta às críticas dos meios militares. Elas começaram a ser anunciadas em abril, logo após o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pena, ter dito durante uma palestra que a política indigenista praticada no País é “lamentável, para não dizer caótica”.

Segundo o general, que é contrário à demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol em área contínua, como determinou o presidente da República, existem ONGs internacionais que estimulam os índios a lutar pela divisão do território nacional.

Dias depois, o ministro da Justiça, Tarso Genro, admitiu a existência de ONGs que “escondem interesses relacionados à biopirataria e à tentativa de influência na cultura indígena, para apropriação velada de determinadas regiões.

Essas últimas são palavras de Ministro de Estado, são palavras de técnico em Direito.

No relatório da Comissão da Câmara dos Deputados, de 2004, aparecem notícias preocupantes, que têm origem em visão de dignitários. Al Gore, ex-Vice-Presidente dos Estados Unidos da América, em 1989, chegou a dizer com todas as letras: “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”. François Mitterrand, ex-Presidente da França, em 1989, veiculou: “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”. Mikhail Gorbachev, ex-Presidente da Rússia, em 1992, bateu em idêntica tecla: “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes”. No mesmo sentido foi a fala de John Major, ex-Primeiro-Ministro do Reino Unido, em 1992: “As nações desenvolvidas devem estender o domínio da lei ao que é comum de todos no mundo, as campanhas

ecologistas internacionais sobre a região Amazônica estão deixando a fase propagandística para dar início a uma fase operativa, que pode, definitivamente, ensejar intervenções militares diretas sobre a região”.

Revela-se, portanto, a necessidade de abandonar-se a visão ingênua. O pano de fundo envolvido na espécie é a soberania nacional, a ser defendida passo a passo por todos aqueles que se digam compromissados com o Brasil de amanhã. Essas considerações hão de ficar nos anais do Supremo, para registrar-se o que realmente veio à balha no julgamento desta ação popular.

DOS DOCUMENTOS E TENDÊNCIAS DOS GRUPOS QUE OS ELABORARAM

Sobre as visões defendidas pelos grupos no processo de demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol e São Marcos, cabe transcrever parte do voto proferido pelo ministro Maurício Corrêa no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.512-5/RR:

[...]

11. Anote-se que na busca da consumação dessa proposta se batem duas correntes formadoras de opinião que no local disputam seguidores; a primeira decorrente da pressão dos católicos, com o apoio da igreja e da FUNAI, encabeça a tese da definição do ato através de demarcação contínua; enquanto a outra, a favor dos blocos ou ilhas, separando as terras dos brancos das dos indígenas, e de modo descontínuo, por ela propugnam os evangélicos e o Governo do Estado, aí incluindo todo o estamento político

oficial, inclusive os seus Senadores e Deputados Federais. A agravar esse quadro realístico permanece uma outra crucial realidade. Com o passar dos tempos as vilas, mescladas de brancos e índios, foram se formando, como dão conta as implantações da Vila Surumu, Maloca do Barro, Vila Água Fria, Maloca Maturuca, Vila Socó, Vila Uirimatã, Maloca do Uirimatã, Vila Mutum, Maloca Bismark e Maloca Raposa, mantendo a Administração Pública, em boa parte dessas aglomerações, tanto por parte do Estado de Roraima, quanto pela União, Escolas Públicas de 1° e 2° Graus, Quartéis da Polícia Militar, Polícia Federal, Cadeias Públicas, Abastecimento de Água, Quartel do Exército, Delegacias de Polícia Civil, Geradores de Eletricidade, com rede de postes e fios, Postos de Saúde e Telefônico da Telaima, Postos das Receitas Estadual e Federal, em vários desses lugarejos. Há serviços de ônibus, pistas de pouso para pequenos aviões, e em muitas casas há televisões conectadas com antenas parabólicas, repetidoras de rádio e toda uma estrutura de atividades desenvolvidas pelos habitantes desses núcleos.

12. O exame desse tema seguramente vai demandar, ademais, que se atenha à legislação da época, no caso, no meio dela, a Lei n° 601, de 1850 e seu Decreto n° 1918, de 1854, que a regulamentou, e pela qual se dava legitimação à posse dos que detêm a terra. Sustenta a FUNAI que essas terras não eram e não são devolutas e sim pertencentes tradicionalmente aos índios, sendo nulos os títulos que foram expedidos. Já por aí se vai vendo que o emaranhado de fatos e ações concretas exige e exigirão percuciente análise de toda uma legislação do século passado e meticulosa pesquisa de documentos e possivelmente a coleta de depoimentos de eventuais testemunhas que conhecem algo sobre o passado dessas fazendas e de seus primeiros possuidores.

Dois fatos podem ser tidos como incontroversos:

a) a área em que se situam os Municípios de Uiramutã e Pacaraima, desde os primeiros apontamentos acerca da origem, registra a presença dos índios Macuxi, Ingaricó, Taurepang, Wapixana e Patamona - voto do ministro Maurício Corrêa na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.512-5/RR;

b) existem fazendeiros na região detentores de títulos de propriedade de terras cadastradas pelo Incra, registrados em cartório - voto do ministro Maurício Corrêa na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.512-5/RR. Nesse ponto, cabe conferir, ainda, trecho do citado Despacho nº 80, de 20 de dezembro de 1996, posteriormente revogado, do então Ministro da Justiça Nelson Jobim (folhas 945 e 946, volume 4):

4.3.2. Imóveis titulados pelo INCRA

Por linha idêntica de raciocínio, tem a Administração Federal o dever ético e político de resguardar os títulos de propriedade outorgados pelo INCRA sobre áreas então excluídas pela própria FUNAI dos limites da terra indígena. O Laudo 1981, na parte sul e sudoeste da área, fez delimitação que não atingia as margens dos rios Tacutu e Surumu. Respaldado nesse laudo de 1981, parte da área então excluída, no sul e sudeste, veio a ser objeto de titulação de terceiros pelo INCRA, o que ocorreu de 1982 em diante. Impõe-se, assim, o restabelecimento da linha divisória estabelecida em 1981, em decorrência do que ficarão excluídas as propriedades mencionadas, o que, de resto, não trará prejuízos ao projeto demarcatório, em seu todo. Por outro lado, é de se observar que o levantamento antropológico de 1993, posterior ao de 1981, não contém fundamento específico algum que demonstre ser essa parte da área indispensável à preservação indígena. Na verdade, o laudo de 1993 é absolutamente silente quanto a qualquer fundamento revisor, nessa parte, do laudo anterior.

4.3.3. Fazenda Guanabara

Igualmente a Fazenda Guanabara, de posse privada antiqüíssima, situada no extremo leste da área (mapa, O-18), deverá ser excluída, sem comprometer a integridade da gleba indígena, à luz dos pressupostos constitucionais. É que o referido imóvel, anteriormente denominado “Cuieria” é de ocupação privada anterior a 1934, desde 1918, consoante reconheceu sentença judicial proferida em ação discriminatória movida pelo INCRA (fls. 31 do processo nº1959/96). Para não encravar o imóvel, sua exclusão deverá

ser feita estendendo-se a respectiva linha divisória para o sul, em direção à cidade de Normandia, o que importará, também, na ampliação do espaço reservado a esse centro

urbano.

É esse o contexto que o Supremo não pode simplesmente ignorar, solapando valores maiores, desconhecendo o fato de índios e não-índios serem todos brasileiros, a eles estando assegurada constitucionalmente a “livre locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus

bens” – inciso XV do artigo 5º da Carta Federal, rol das garantias constitucionais.

Que a visão romântica, calcada em resgate de dívida caduca – e porque não falar dos quilombolas –, seja alijada deste julgamento.

DA PETIÇÃO INICIAL

O autor argumenta ter a Portaria nº 534 mantido os vícios da antiga Portaria nº 820, quais sejam, aqueles apontados em perícia realizada na Ação Popular nº1999.42.00.000014-7, ajuizada por Silvino Lopes da Silva, que tramitou perante Vara Federal de Roraima e foi extinta em face da perda de objeto. Afirma haver a Comissão de Peritos, antes mesmo de apresentar resposta aos quesitos, concluído, por unanimidade, o seguinte (folhas 7 e 8):

Que seja considerada nula de pleno direito a Portaria 820, de 11 de dezembro de 1998, do Excelentíssimo Senhor Ministro de Estado da Justiça, que declarou de posse indígena a “terra indígena Raposa Serra do Sol”, por ter sido ato praticado após a vigência do Decreto 1.775/96, e não se ter pautado pelas normas ali prescritas, além de todo o processo ter sido eivado de erros e vícios insanáveis, tais como:

i. Contou com a participação parcial de apenas um dos lados dos indígenas, o dos que defendem a demarcação em área contínua;

ii. Teve a participação do Governo do Estado completamente comprometida, inclusive, por omissão e descaso do próprio Governo Estadual, à época;

iii. A academia não foi devidamente convidada a participar, nem participou como deveria;

iv. Sem razão explicitada, incluiu no grupo técnico interinstitucional, a Igreja Católica, única representante das entidades religiosas, com dois representantes;

v. Os Municípios à época envolvidos, Boa Vista e Normandia, não participaram nem foram convidados a participar do grupo técnico;

vi. Os produtores agropecuários, os comerciantes estabelecidos nas localidades, os garimpeiros, e os demais atores não foram sequer considerados;

vii. O Grupo Interinstitucional de trabalho não apresentou “relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada” como manda o parágrafo 7º do Art. 2º do Decreto nº 22, de 04.02.91 (vigente à época), sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas;

viii. O relatório apresentado pela antropóloga é uma coletânea de peças completamente independentes, sem formar um corpo lógico tendente a indicar qualquer tipo de demarcação;

ix. O relatório não contém análise alguma da qual se possa tirar conclusões sobre importantes tópicos, tais como:

a. Reflexos sobre os interesses da Segurança e da Defesa Nacionais;

b. Reflexos sobre a importância da região para a economia do Estado de Roraima;

x. O laudo antropológico da FUNAI (apresentado pela antropóloga MARIA GUIOMAR) é uma reprodução, sem novidade alguma, de laudo anteriormente apresentado para justificar outro tipo de demarcação para as mesmas terras da Raposa Serra do Sol;

xi. A Portaria 820/98 englobou na demarcação das terras indígenas Raposa Serra do Sol a área constante do Parque Nacional Monte de Roraima, criado pelo Decreto 97.887, de 28.07.89;

xii. A Portaria 820/98 englobou a área de 90.000 há dos Ingarikós, já demarcada anteriormente por meio da Portaria Interministerial nº 154, de 11.06.89, sem maiores explicações.

A conclusão semelhante chegou a Câmara dos Deputados, conforme relatório da Comissão Externa constituída para avaliar, no local, a situação da demarcação em área contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Eis o que consta à folha 6566 à 6568, volume 25:

[...]

Os trabalhos desta Comissão mostraram que o processo de demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol foi desenvolvido de forma irregular, contendo ilegalidades e inconstitucionalidades. A elaboração de peças centrais do Laudo Antropológico por entidades ligadas à defesa dos direitos indígenas compromete a sua isenção, em prejuízo dos princípios da impessoalidade e da razoabilidade da atuação da Administração Pública.

Outrossim, o Laudo não comprova com o devido detalhamento e profundidade o atendimento aos requisitos do art. 231 da Constituição, como expressamente reconhecido no Despacho nº 80/96, do Ministério da Justiça.

Há contradição insolúvel entre a decisão das contestações administrativas à área pretendida, expressa no Despacho nº 80/96, e a Portaria de Identificação nº 820/98, ambos do Ministério da Justiça. A exclusão de áreas que não se caracterizam como indígenas ordenada pelo Despacho não foi efetuada pela Portaria, em violação ao art. 2º, §8º e § 10, inciso III, do Decreto nº 1.775, de 1996, e em contradição aos motivos declarados pela Administração no procedimento administrativo de demarcação. Tal procedimento sujeita a Portaria à anulação pela Administração, e ao controle pelo Poder Judiciário. Considerando as falhas havidas no processo demarcatório, a Portaria nº 820/98 inclui em área indígena terras que não atendem aos requisitos do artigo 231 da Constituição Federal. A Portaria é, portanto, inconstitucional. A atual delimitação da área indígena Raposa/Serra do Sol trouxe prejuízos para a segurança jurídica na região, violando direitos adquiridos e a autoridade da coisa julgada, em flagrante inconstitucionalidade.

Sendo a Constituição Federal um sistema normativo, é equívoco interpretar seu art. 231 isoladamente, como único fundamento constitucional para a demarcação da reserva Raposa/Serra do Sol e das terras indígenas em geral. O conteúdo do art. 231 deve ser compatibilizado com outros dispositivos constitucionais (e.g. soberania, art. 1; segurança nacional, art. 91, § 1º; autonomia federativa, art. 18; devido processo legal, art. 5º, LIV; garantia da propriedade, art. 5º, XXII) e princípios gerais da ordem jurídica (e.g. proteção da boa fé dos atos jurídicos), de forma a que se atinja um equilíbrio entre os direitos das partes envolvidas).

A supressão do Município de Uiramutã, como conseqüência da Portaria nº 820/98, viola a autonomia de ente federado criado segundo regular processo constitucional, legitimado mediante consulta plebiscitária às populações interessadas.

A situação da área Raposa/Serra do Sol em faixa de fronteira recomenda a oitiva do Conselho de Defesa Nacional, nos termos do art. 91, §1º, III, da Constituição Federal.

É certo que o interesse de proteção das comunidades indígenas há de ser respeitado, nos moldes do art. 231 da Constituição Federal. Cumpre entretanto lembrar que a Constituição é patrimônio de todos os brasileiros. A proteção que ela oferece vai muito além do citado artigo e suas disposições alcançam cada grupo, cada etnia e cada cidadão, para que na proteção de cada um de nós o bem coletivo se realize. Sendo a Carta Magna uma unidade normativa cabe interpretar a proteção ao interesse das comunidades indígenas de forma a não prejudicar – no caso gravemente – interesses legítimos e igualmente tutelados pelo texto constitucional. Caberá ao Poder Executivo da União, ente competente para a solução da controvérsia aqui exposta, ter sabedoria para concretizar esse objetivo.

Já o Ministério Público Federal, no parecer de folha 398 a 400 - volume 2 -, no qual se manifestou pela improcedência do pedido formulado, conclui em sentido diverso:

[...]

29. Em termos concretos, e seguindo o propósito do constituinte, uma vez positivada a tutela dos povos indígenas, a ação administrativa dá corpo ao modelo adotado, obedecendo ao regime legal em vigor – Decreto nº1.775/96 e, antes dele, o Decreto nº22/91 -, que encerra as seguintes fases:

(i) estudo multidisciplinar, conduzido por antropólogo, como adiantado, que indicará os limites do território em conformidade com o art. 231 da Constituição da República; (ii) designação de grupo técnico especializado com a finalidade de realizar estudos complementares, “composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional”;

(iii) encaminhamento do resultado do trabalho ao Presidente da FUNAI, que o publicará, em sendo aprovado, no Diário Oficial da União e no da unidade federada onde se localizar a área objeto de demarcação;

(iv) abertura de prazo para impugnações, “desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação” referida, que serão julgadas pela FUNAI;

(v) remessa do procedimento ao Ministério da Justiça, que poderá declarar, por portaria, os limites da terra indígena, prescrever as diligências que julgar necessárias ou desaprovar a identificação.

30. No caso estudado, da ‘Terra Indígena Raposa Serra do Sol’, tome-se como posição do Ministério Público Federal a plena regularidade do procedimento administrativo que resultou no ato demarcatório/homologatório impugnado, porque fundado em consistente estudo antropológico, assim como criterioso na verificação de todas as fases procedimentais exigidas pela ordem legal, seguindo o pronunciamento já mencionado da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da instituição, que o acompanhou em todas as suas etapas (documento anexo).

31. Especificamente em relação ao contraditório e à ampla defesa – ponto atacado com maior ênfase -, o que abarca a alegação de participação deficitária de grupos e entidades determinadas no procedimento demarcatório, verifica-se rigoroso respeito aos comandos do Decreto nº1.775/96, em especial aos seus arts. 2º, § 8º, e 9º, já declarados legítimos, como efetivos garantidores dos princípios citados, pelo Plenário dessa Corte, quando do julgamento do MS º 24.045, DJ de 5.8.2005, e MS 25.483, DJ de 14.9.2007.

32. O estudo antropológico prescrito pelo ato normativo foi realizado por profissional habilitado para tanto, não sendo legítimo presumir seja parcial pelo só fato de haver sido assinado por um único perito quando a lei não exige modo diverso. Ali, está demonstrada não só a posse tradicional e imemorial dos grupos indígenas sobre toda a extensão da área, como a necessidade de demarcação da faixa contínua de terras, de maneira a preservar a cultura indígena nos moldes já descritos.

33. Verificada, por meio dos estudos cabíveis, a presença dos elementos contidos no art. 231, § 1º, da Constituição da República, caracterizada está a posse indígena, devendo prevalecer sobre qualquer outra, porque essencial ao exercício da identidade do grupo, cabendo à União protegê-la e fazer respeitar todos os seus bens, assegurando-se ainda aos índios o usufruto exclusivo das riquezas ali existentes. A proteção, nesse nível, é efetivada por meio do ato demarcatório de competência do Ministério da Justiça, que será homologado, em seguida, por Decreto do Presidente da República.

34. Aí a origem da Portaria nº 534/2005 e do decreto homologatório da demarcação, de 15 de abril do mesmo ano, livres, como visto, dos vícios formais apontados, cabendo afastar, com base nas informações prestadas pelas autoridades rés e no art. 3º do Decreto nº1.775/96 – segundo o qual “os trabalhos de identificação e delimitação de terras indígenas realizados anteriormente poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência ao índio para efeito de demarcação, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos [naquele] Decreto” -, a alegação de que a edição da nova portaria, revogadora daquela de 1998 (de nº 820), deveria vir como conseqüência de procedimento absolutamente desvinculado daquele que precedeu a edição do ato anterior.

NULIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, POR VIOLAÇÃO DOS DECRETOS Nº 22/91 E 1.775/96, CONSIDERADA A NÃO PARTICIPAÇÃO DE TODOS OS INTERESSADOS – OFENSA AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA

Vale lembrar ter o autor citado o relatório da Comissão de Peritos, em que arguida a nulidade do procedimento administrativo, considerando, entre outros aspectos, os seguintes (folha 7):

i. Contou com a participação parcial de apenas um dos lados dos indígenas, a dos que defendem a demarcação em área contínua;

ii. teve a participação do Governo do Estado completamente comprometida, inclusive, por omissão e descaso do próprio Governo Estadual, à época;

iii. A academia não foi devidamente convidada a participar, nem participou como deveria;

iv. Sem razão explicitada, incluiu no grupo técnico interinstitucional, a Igreja Católica, única representante das entidades religiosas, com dois representantes;

v. Os Municípios à época envolvidos, Boa Vista e Normandia, não participam nem foram convidados a participar do grupo técnico;

vi. Os produtores agropecuários, os comerciantes estabelecidos nas localidades, os garimpeiros, e os demais atores não foram sequer considerados;

Sustenta a participação deficitária de grupos e entidades no processo demarcatório. É que o artigo 9º do Decreto nº 1.775/96 prevê, relativamente às demarcações então em curso, cujo decreto homologatório não tenha sido objeto de registro em cartório imobiliário ou na Secretaria de Patrimônio da União, do Ministério da Fazenda, poderem os interessados se manifestar no prazo de noventa dias, contados da respectiva publicação.

Cumpre consignar a distinção entre o direito de defesa dos interessados de terras cujos processos demarcatórios hajam começado antes do advento do Decreto nº 1.775/96 – tal como o relativo à demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, porquanto o grupo de trabalho foi constituído pela Portaria PP nº 1.141/92, de 6 de agosto de 1992 - e aqueles cujos processos tenham tido início após a publicação do Decreto.

No primeiro caso, o contraditório não alcança todas as fases do processo de demarcação, havendo apenas uma única oportunidade de defesa, já perante a autoridade do Ministério da Justiça.

Nesse ponto, cabe registrar ter o Plenário assentado a constitucionalidade do procedimento. Eis o trecho da ementa do acórdão alusivo ao Mandado de Segurança nº 25.483-1/DF - relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto -, publicada no Diário da Justiça de 14 de setembro de 2007:

[...]

Não há que se falar em supressão das garantias do contraditório e da ampla defesa se aos impetrantes foi dada a oportunidade de que trata o artigo 9º do Decreto 1.775/96 (MS 24.045, Rel. Min. Joaquim Barbosa).

[...]

Mandado de Segurança parcialmente conhecido para se denegar a segurança.

No voto, o ministro Carlos Ayres Britto assim se pronunciou:

[...]

19. Da mesma forma, afasto a alegação de que aos impetrantes não foi ensejada oportunidade de defesa, no procedimento administrativo demarcatório das Terras Indígenas Raposa Serra do Sol. O que faço, em primeiro lugar, acolhendo o entendimento de que, dada a possibilidade de os interessados se manifestarem sobre a demarcação, no prazo de 90 dias (artigo 9º do Decreto 1.775/96), não é de se falar em supressão da garantia da ampla defesa e do contraditório (MS 24045, Rel Min. Joaquim Barbosa). Em segundo lugar, as informações trazidas pelo Presidente da República dão conta que “os impetrantes, assim como o Estado de Roraima, foram cientificados do processo de demarcação da terra indígena e tiveram o prazo de contestação lhes facultado pelo art. 9º do Decreto nº1.775/96” (folha 1.095). Contestações, aliás, que foram feitas, analisadas e indeferidas pelo Ministro da Justiça (fls. 559), conforme se lê das informações prestadas pelo Presidente da República.

[...]

No tocante à alegação de supressão da garantia do contraditório e da ampla defesa, foi evocado o que decidido no Mandado de Segurança nº 24.045-8/DF, relatado pelo ministro Joaquim Barbosa no Plenário, em 24 de abril de 2005, quando fiquei vencido, consignando o seguinte:

No mérito, peço vênia ao relator para conceder a segurança, porque a evocação do contraditório não se dá, evidentemente, considerado o Decreto nº 1.775/96. Esse decreto previu o contraditório, mas o fez para, de certa forma, reconhecer que até então estaria havendo transgressão do princípio constitucional do contraditório quanto ao processo administrativo em curso. E revelou que processos subseqüentes ao decreto teriam o contraditório observado desde o início, enquanto aqueles já em andamento seguiriam, abrindo-se dali para frente a oportunidade de manifestação não só das pessoas jurídicas de Direito Público, como também de interessados.

Ora, se não houve a observância, como é exigido pela Constituição Federal, desde o início do processo administrativo, evidentemente, o contraditório foi inobservado. Com essa óptica, peço vênia para conceder a ordem.

Nesse sentido, já me manifestara no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.575-5/MS, apreciado pelo Plenário em 3 de fevereiro de 1994, relativamente ao processo administrativo de demarcação:

Acresce a isto que mesmo diante das conseqüências jurídicas do Decreto homologatório da demarcação – se é que ele realmente as tem – posto que formalmente baixado para os fins fixados no artigo 231 da Constituição Federal, os Impetrantes não foram cientificados para, querendo, acompanhar o processo administrativo que lhe serviu de base e no qual se entendeu pelo enquadramento das terras como de ocupação indígena.

Somente com a conclusão respectiva se lhes dirigiram cartas comunicando a reocupação da área pelos índios e conferindo o exíguo prazo de cinco dias para desocupação, sob pena de a FUNAI não se responsabilizar por atos predatórios dos indígenas, seguindo-se o requerimento junto ao Ofício de Imóveis com o objetivo de alterar os registros constantes das matrículas.

O simples fato de tratar-se de um processo administrativo de demarcação de terras não exclui a observância das regras constitucionais asseguradoras do direito de defesa – incisos LIV e LV do artigo 5º. O que se nota é que os Impetrantes tiveram os imóveis alcançados pelo Decreto de homologação, sem que tenham participado do processo administrativo que lhe deu causa.

Quanto à participação dos povos indígenas, aponta-se não haverem sido consideradas, no trabalho, as opiniões, manifestações e informações de grupos indígenas envolvidos – Wapixana, Patamona, Ingaricó e Taurepang -, apenas se tendo ouvido o grupo Macuxi.

Eis como o relator se manifesta sobre o tema, o que torna o fato incontroverso, sobretudo em relação aos Ingaricós:

109. O mesmo é de se dizer quanto à participação de qualquer das etnias da área: Ingarikó, Macuxi, Patamona, Wapichana e Taurepang. Sendo que somente se apresentaram para contribuir com os trabalhos demarcatórios os Makuxi, filiados ao Conselho Indígena de Roraima – CIR. Os demais indígenas, tirante os Ingarikó, atuaram diversas vezes nos autos com cartas e petições. Todos forneciam informações e nenhum deles subscreveu o relatório nem o parecer antropológico, elaborados pela antropóloga Maria Guiomar Melo, servidora da FUNAI e pelo Prof. Paulo Santilli, respectivamente.

Nesse ponto, valho-me da opinião dos professores S. James Anaya e Robert A. Williams Jr., externada em artigo veiculado em publicação jurídica da Universidade de Harvard

(tradução livre):

“The Protection of Indigenous People’s Rights over Lands and Natural Resources Under the Inter-American Human Rights System” in Harvard Human Rights Journal. http://www.law.harvard.edu/students/orgs/hrj/iss14/williams.shtml#Heading388. Acessado em 15 de janeiro de 2009.

Como demonstrado anteriormente, à luz da Convenção Americana, da Declaração Americana e de outras fontes de direito internacional, os povos indígenas têm o direito de proteção das terras que tradicionalmente ocupam e dos recursos naturais. Dessa maneira, as normas de direitos humanos que protegem os povos indígenas garantem, no mínimo, interesses em terras e recursos naturais obrigam aos estados a consultar com os grupos indígenas envolvidos sobre quaisquer decisões que possam vir afetar os interesses e adequadamente pesar esses interesses no processo de formação de decisões.

Os mencionados professores citam trecho de precedente da Suprema Corte do Canadá no qual consignado o seguinte:

[...] existe sempre o dever de consulta... essa consulta deve ser feita em boa-fé e com a intenção de substancialmente abordar as preocupações dos povos aborígenes cujas terras estão em jogo. Na maioria dos casos, [a obrigação] será significativamente mais profunda que a mera consulta. Alguns casos ... requerem o total consentimento da nação aborígene.

Delgamuukw v. British Columbia [1997] 3 S.C.R. 1010 (Can.) (1997).

Observem o que preceitua o artigo 6º da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais:

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:

a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;

c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.

2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa-fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

No mesmo sentido, a previsão do § 3º do artigo 2º do Decreto nº 22/91, também constante do Decreto nº 1.775/1996, ambos versando sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas:

Art. 2º. [...]

[...]

§ 3º O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases.

Na inicial, o autor popular afirma não interessar para muitos a demarcação contínua, pois provoca o isolamento dos silvícolas. Alega estarem os índios da reserva, em grande maioria, totalmente adaptados à sociedade envolvente. São índios ditos integrados. Chega a afirmar ter sido constatado, no local, que a maior parte dos silvícolas é contra a reserva tal como concebida, ressaltando a parcialidade do trabalho técnico que originou a Reserva Raposa Serra do Sol.

Memorial apresentado pelo ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Maurício Corrêa. p. 4.

Em obra intitulada “Índios de Roraima”, de autoria do Centro de Informação Diocese de Roraima, quanto aos índios Ingaricós, não ouvidos no processo, assevera-se o seguinte:

Os Ingarikó integram sua dieta com peixe, pescado com anzóis de metal, e com caça, que apanham com arco e flecha e também com espingardas, obtidas através de trocas com os outros povos indígenas ou com garimpeiros brancos da região limítrofe. Além das espingardas, os Ingarikó obtêm, através de seu comércio, ferramentas, roupas e, até rádios gravadores.

Relativamente aos Wapixanas, vejam trecho consignado à folha 75 do referido livro:

A relação com a sociedade dos brancos, hoje, desenvolve-se de várias maneiras, sobretudo através de um contato direto com a cidade. É necessário ressaltar que, para as malocas da Serra da Lua e Taiano, a cidade dista menos de cem quilômetros, com estradas que atravessam toda a extensão destas duas regiões. Isto representa possibilidade cotidiana de transporte, tanto nos carros dos fazendeiros, como no ônibus de linha que liga Boa Visa a Taiano e Bonfim. Semanalmente chega, também, o caminhão da FUNAI.

Além disso, em função desta facilidade de acesso, muitos Wapixana possuem bicicletas com as quais, em poucas horas de viagem, podem alcançar Boa Vista. A cidade oferece aos jovens a possibilidade de trabalho que, além de resolver os próprios problemas econômicos, são uma solução para superar desacordos com os pais, não mais resolvidos em termos rituais (ritos de iniciação ou de passagem), como ainda acontece com as moças.

[...]

Todo o território Wapixana, excluindo a área da Guiana, foi invadido por fazendas de gado. No início, pelas pertencentes aos descendentes das famílias dos primeiros colonos do Rio Branco, e, depois em tempos mais recentes, por outras que pertencem a comerciantes de Boa Vista. Muitos Wapixana, desde a implantação das primeiras fazendas, tornaram-se peões ou vaqueiros a serviços destas. É muito difundido o costume do compadrio entre fazendeiros e índios. Assim, os Wapixana tornaram-se “parentes” desses fazendeiros, com todas as conseqüências que já vimos nos outros povos. Também usa-se, para obter mão-de-obra barata, pedir os filhos dos índios para serem criados nas fazendas.

[...]

O modelo de relação trabalhador-empregador que os empresários e fazendeiros trouxeram do sul do Brasil, nada tem a ver com a relação fazendeiro local-índio, a qual os Wapixana tinham se acostumado e se acomodado. Agora são fazendas de tipo “capitalista” e, assim, também a relação de produção tem que ser deste tipo. Os índios não entendem,

mas percebem que algo mudou, como nos confirmou um velho Wapixana da maloca de Malacacheta: “onde é que se viu alguém cultivar capim no lavrado”?

[...]

É um tipo de invasão diferente dos fazendeiros e os índios geralmente convivem de modo pacífico com esses colonos. O surgimento de novos povoados acaba atraindo os Wapixana e muitos abandonam as malocas para morar no meio dos brancos.

Surge incontroversa a necessidade de consulta a todas as comunidades envolvidas na demarcação. O estágio de aculturamento talvez tenha avançado de tal maneira que não mais interessa o total isolamento do povo indígena, de forma a viabilizar a vida como em tempos ancestrais. Não cumprir o dever de consulta pode vir a provocar maior lesão aos direitos humanos, pois parte-se da premissa errônea de que todas as comunidades desejam o isolamento.

NULIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, POR VIOLAÇÃO DOS DECRETOS Nº 22/91 E 1.775/96, CONSIDERADO O FATO DE O RELATÓRIO DO GRUPO INTERDISCIPLINAR TER SIDO ASSINADO POR UMA ÚNICA PESSOA, A ANTROPÓLOGA MARIA GUIOMAR DE MELO, REPRESENTANTE DA FUNAI

As regras concernentes à designação de grupo técnico para elaboração de estudos sobre área a ser demarcada estavam previstas no artigo 2º do Decreto nº 22/91, então vigente quando iniciados os trabalhos de demarcação. Eis a íntegra do dispositivo:

Art. 2º A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será precedida de identificação por Grupo Técnico, que procederá aos estudos e levantamentos, a fim de atender ao disposto no § 1º do art. 231 da Constituição.

§ 1º O Grupo Técnico será designado pelo órgão federal de assistência ao índio e será composto por técnicos especializados desse órgão que, sob a coordenação de antropólogo, realizará estudos etnohistóricos, sociológicos, cartográficos e fundiários necessários.

§ 2º O levantamento fundiário de que trata o § 1º, caso seja necessário, será realizado conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico.

§ 3º O grupo indígena envolvido participará do processo em todas as suas fases.

§ 4º Outros órgãos públicos, membros da comunidade científica ou especialistas sobre o grupo indígena envolvido, poderão ser convidados, por solicitação do Grupo Técnico, a participar dos trabalhos.

§ 5º Os órgãos públicos federais, estaduais e municipais devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar, perante o Grupo Técnico, informações sobre a área objeto de estudo, no prazo de trinta dias contados a partir da publicação do ato que constituir o referido grupo.

§ 6º Concluídos os trabalhos de identificação, o Grupo Técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.

§ 7º Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este o fará publicar no Diário Oficial da União, incluindo as informações recebidas de acordo com o § 5º.

§ 8º Após a publicação de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo processo de demarcação ao Ministro da Justiça que, caso julgue necessárias informações adicionais, as solicitará aos órgãos mencionados no § 5º para que sejam prestadas no prazo de trinta dias.

§ 9º Aprovando o processo, o Ministro da Justiça declarará, mediante portaria, os limites da terra indígena, determinando a sua demarcação.

§ 10. Não sendo aprovado o processo demarcatório, o Ministro da Justiça devolvê-lo-á para reexame, no prazo de trinta dias.

Pois bem, para a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, veio a ser publicada a Portaria nº 1.141, de 6 de agosto de 1992, designando o Grupo Técnico Interinstitucional. Não foi possível localizar a íntegra da Portaria, mas, no relatório sobre a Proposta de Demarcação da Área Indígena Raposa Serra do Sol, consta o seguinte (folha 425, volume 2):

Pelas Portarias N. 1.141/92 de 06/08/92, N.1.285/92 de 25.08.92, N. 1.375/92 de 08.09.92 e N. 1.553/92 DE 08.10.92 (em anexo), o Presidente da FUNAI criou um grupo técnico interinstitucional, com a finalidade de identificar e realizar o levantamento fundiário da ÁREA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. O grupo de técnico foi constituído por:

1. Funcionários da FUNAI (Fundação Nacional do Índio)

¾ MARIA GUIOMAR DE MELO (antropóloga);

¾ ZENILDO DE SOUZA CASTRO (técnico em agrimensura);

¾ ANTÔNIO DE PAULA NOGUEIRA NETO;

¾ MANOEL REGINALDO TAVARES (engenheiros agrônomos), e;

¾ OZIRES RIBEIRO SOARES (técnicos agrícolas).

2. Funcionários do INCRA (Instituto Nacional de Reforma Agrária)

¾ NILTON SÉRGIO MARTINS COSTA DE FREITAS (técnico agrícola).

3. Funcionários da SEIMAJUS (Secretaria Estadual de Meio Ambiente, Interior e Justiça) do Estado de Roraima

¾ ROBÉRIO BEZERRA DE ARAÚJO (Secretário);

¾ ANTÔNIO HUMBERTO BEZERRA DE MATOS;

¾ LUIS ALFREDO MENDES DE SOUZA;

¾ GERÔNCIO GOMES TEIXEIRA;

¾ DORVAL COSTA JÚNIOR;

¾ VAGNER AMORIM DE SOUZA, e;

¾ MEILDES FABRÍCIO LEMOS (técnicos agrícolas).

4. Pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo)

¾ PAULO JOSÉ BRANDO SANTILLI (antropólogo), e;

¾ JOSÉ JULIANO CARVALHO (economista).

5. Membro do CIMI (Conselho Indígena Missionário)

¾ FELISBERTO ASSUNÇÃO DAMACENO (advogado).

6. Membro da Diocese de Roraima

¾ ANA PAULA SOUTO MAIOR (advogada)

7. Lideranças Indígenas indicadas pelo CIR (Conselho Indígena de Roraima)

¾ JOSÉ ADALBERTO DA SILVA

¾ JUCELINO JOAQUIM MARQUES, MARTINS DE OLIVEIRA (representantes das comunidades indígenas da região da serra)

¾ ALCIDES CONSTANTINO (representante das comunidades indígenas da região do baixo Contigo)

¾ MELQÍADES PERES NETO (representante das comunidades indígenas da região do Surumu)

¾ SEVERINO AMARO

¾ JOÃO BATISTA RUFINO DE SOUZA (representantes das comunidades indígenas da região da Raposa)

¾ ODILON ERNESTO MALHEIROS

¾ DONALDO SOUZA MARCULINO, e;

¾ AUGOSTINHO PAULINHO.

Consoante registrado no laudo da Comissão de Peritos Judiciais, o relatório desse Grupo Técnico é o documento a embasar e justificar todas as decisões do Governo Federal que deram origem ao Decreto de Homologação da Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. “Tudo girou em torno do resultado dos trabalhos desse grupo técnico interinstitucional, que conteria a participação de instituições que possuem interesses no caso” (folha 1518, volume 6).

Segundo os peritos, a Funai deu “muita ênfase ao aspecto interinstitucional do Relatório do Grupo Técnico” e ao fato de terem “seguido à risca todas as normas administrativas e jurídicas”, ao rebater o laudo antropológico apresentado pelo Governo do Estado, em 1993, argumentando (folha 1518, volume 6):

(...)

4. os trabalhos realizados no âmbito administrativo do Grupo de Trabalho instituído pela FUNAI, envolvendo além de quadros especializados da FUNAI e de outros órgãos da administração federal, técnicos do governo estadual de Roraima e pesquisadores de universidades públicas, seguiram à risca todas as normas administrativas e jurídicas que tratam do procedimento de identificação e demarcação de áreas indígenas;

(...)

Pela regra do § 6º do Decreto nº 22/91, “concluídos os trabalhos de identificação, o Grupo Técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.”

Além disso, em 8 de janeiro de 1996, foi publicado o Decreto nº 1.775/1996, contendo novas regras sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, dando outras providências e revogando normas anteriores. A exigência da designação do grupo técnico especializado, porém foi mantida com a finalidade de realizar estudos complementares.

Confiram:

Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art.17, I, da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, e o art.231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto.

Art. 2º A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.

§ 1º O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.

[...]

§ 4º O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo.

§ 5º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação.

§ 6º Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.

Pois bem, segundo o autor, no caso em exame, o Relatório do Grupo Interdisciplinar foi assinado por uma única pessoa, a antropóloga Maria Guiomar de Melo, representante da Funai. Afirma demonstrar o fato a parcialidade e a conseqüente nulidade do procedimento administrativo. Assevera não se poder supor estar tal técnica representando todo o grupo, tampouco havendo prova do credenciamento. Argumenta não ter a maioria dos designados pela portaria tomado ciência do relatório. Alguns

desconheciam, até mesmo, a respectiva nomeação. Afirma que os dois representantes do Estado de Roraima, por exemplo, não eram técnicos e sim motoristas.

A circunstância de o estudo antropológico ter sido subscrito por apenas um perito é incontroversa. Pude constatar pelo documento de folha 423 a 548. Confiram ainda o item 32 do parecer do Ministério Público (folha 399, volume 2):

[...]

32. O estudo antropológico prescrito pelo ato normativo foi realizado por profissional habilitado para tanto, não sendo legítimo presumir seja parcial pelo só ato de haver sido assinado por um único perito quando a lei não exige de modo diverso. Ali, está demonstrada não só a posse tradicional e imemorial dos grupos indígenas sobre toda a extensão da área, como a necessidade de demarcação de faixa contínua de terras, de maneira a preservar a cultura indígena nos moldes já descritos.

[...]

No voto do relator, está consignado:

[...]

111. O que importa para o deslinde da questão é que toda a metodologia propriamente antropológica foi observada pelos profissionais que detinham competência para fazê-lo: os antropólogos Maria Guiomar Melo e Paulo Brando Santilli. Este último indicado permanentemente prestigiado pela Associação Brasileira de Antropologia, de cujos quadros societários faz parte como acatado cientista. Ele foi o responsável pela confecção do parecer antropológico que, a partir dos estudos e levantamentos feitos pela Dra.Maria Guiomar (ela também um destacado membro da Associação Brasileira de Antropologia), serviu de base para os trabalhos demarcatórios em causa, assinando-o solitariamente, como estava autorizado a fazê-lo (tanto quanto a Dra. Guiomar). Afinal, é mesmo a profissional da antropologia que incumbe assinalar os limites geográficos de concreção dos comandos constitucionais em tema de área indígena. O que se lhe mostra impertinente ou estranho é laborar no plano de uma suposta conveniência da busca de um consenso entre partes contrapostas e respectivos interesses, que ele, Paulo Santili, acertadamente não intentou.

[...]

Com base no relatório da Câmara dos Deputados, aponta-se a nulidade do laudo em razão de ofensa ao princípio da impessoalidade. É que apenas integrantes do Conselho Indígena de Roraima haveriam composto o Grupo Técnico. Embora tenham representatividade, este não abrange todos os índios, sobretudo aqueles que defendem a demarcação de forma não contínua. Abaixo trecho sobre o tema (folha 6556, volume 25):

Pode-se constatar que a participação do Conselho Indígena de Roraima – CIR e do Conselho Indigenista Missionário – CIMI foi decisiva na elaboração do Laudo. Com efeito, a análise da situação fundiária da Raposa/Serra do Sol foi baseada em levantamento realizado pelo Conselho Indígena de Roraima – CIR. O texto chega mesmo a declarar que “foi visando ampliar seu campo de atuação política e defender sua terra, que o CIR encaminhou ao GT a pesquisa sobre a situação fundiária da AI RAPOSA/SERRA DO SOL”.

Outrossim, o parecer jurídico do Laudo foi escrito pelo advogado Sr. Felisberto Assunção Damaceno, membro do CIMI. A elaboração de peças centrais do Laudo Antropológico por essas entidades compromete a isenção do trabalho, em prejuízo da impessoalidade da Administração Pública. [...]

A participação apenas do Conselho Indígena de Roraima mostra-se inquestionável. Confiram trecho do laudo antropológico (folha 459, volume 2):

[...]

O levantamento resultou na coleta de dados sobre 83 malocas, 181 posses, na sua maioria fazendas, 1 vila e 3 pontos de apoio aos garimpos dos rios Mau, Cotingo e Quino. Foi possível coletar informações abrangentes sobre a ocupação indígena e a dos posseiros. Contudo as informações relativas aos garimpos não foram suficientes para permitir uma análise mais global da situação. A equipe de trabalho se constituiu de 4 membros do CIR e uma advogada contratada para ser responsável pela coleta de dados e futura análise dos mesmos. Além dessa equipe volante, este trabalho contou como o apoio do assessor jurídico da Diocese e do CIR e sua secretaria no armazenamento dos dados coletados.

No laudo, elaborado por ordem do Juízo Federal, os peritos assim se pronunciaram (folhas 1519 e 1520, volume 6):

O Conselho Indígena de Roraima (CIR), sem dúvida, representa parcela dos índios dessa região. O CIR defende, como sempre defendeu, a demarcação, com a retirada dos nãoíndios da reserva. Porém, forçoso é reconhecer que existem outras organizações indígenas que também representam parte desses índios, tais como, a Associação dos Povos Indígenas de Roraima (APIR), a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima (SODIURR), a Associação Regional Indígena do Rio Kinõ ao Monte de Roraima (ARIKON), o Conselho dos Povos Indígenas Ingaricó (COPING), e a Aliança de Integração e Desenvolvimento das Comunidades Indígenas de Roraima (ALIDICIR).

[...]

O grupo de trabalho interinstitucional criado pela Portaria nº 1.141/92 contém dez (10) índios, todos indicados pelo CIR. Compor um grupo de trabalho com a participação indígena indicada apenas pelo CIR é, no mínimo, parcial e injusto, por não conter representação das outras instituições e dos outros índios não favoráveis à demarcação, de forma contínua. Pelo menos no que diz respeito à representação indígena, a escolha dos membros da comissão foi tendenciosa ao favorecer apenas um dos lados da discussão.

A Comissão de Peritos também registrou ter tido a oportunidade de conversar com integrantes do Grupo Técnico Institucional, relatando o seguinte (folha 1520, volume 6):

[...] a Comissão de Peritos teve a oportunidade de conversar com o Sr. Antônio Humberto Bezerra de Matos (um dos técnicos agrícolas, representante do Governo do Estado) que afirmou não ser técnico agrícola e que não tomou conhecimento de sua nomeação pela Portaria nº 1.141, e nunca participou de atividade alguma relativa à demarcação em questão. Chegou a afirmar que nunca esteve na área Raposa Serra do Sol. A Comissão recebeu a visita do Sr. Gerôncio Gomes Teixeira (outro componente do GT) que informou que não era técnico agrícola e sim, Auxiliar Operacional Agropecuário e que esteve na área Raposa/Serra do Sol conduzido pelo motorista Maíldes e acompanhando um “doutor de Brasília”. Seu trabalho foi única e exclusivamente “medir alguns currais e contar algumas árvores” a mando do “doutor”, em fazendas da região. Ficou surpreso ao saber que fazia parte de um Grupo Técnico Interinstitucional de tanta relevância para o Estado de Roraima e que representaria o Governo do Estado, nessa Comissão. A Comissão de Peritos conversou também com os Senhores Vagner Amorim de Souza e Maíldes Fabrício Lemos (também pertencentes ao GT, como técnicos agrícolas) que afirmaram não serem técnicos agrícolas e, sim, motoristas, e que não sabiam que faziam parte do Grupo Técnico. A única atividade de ambos no processo de demarcação foi relativa à responsabilidade de conduzir algumas pessoas à área pretendida.

Eis o que consignado, nesse ponto, no voto do ministro Carlos Ayres Britto, relator:

[...]

108. No ponto, anoto que os trabalhos de demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol começaram em 1977, data a partir da qual o tema ganhou todas as tintas dos chamados “fatos públicos e notórios”. Daí porque, em acréscimo a essa publicidade natural, o estudo de 1991/1992 foi sinteticamente publicado no Diário Oficial da União já em abril de 1993, tudo conforme os dizeres do § 7º do art. 2º do Decreto 22/91 e como decorrência do aforismo tempus regit actum e do princípio processual da instrumentalidade das formas. Tempo mais que suficiente para que todas as partes e demais interessados se habilitassem no procedimento e ofertassem eventuais contraditas, porquanto o primeiro despacho do Ministro da Justiça Nelson Jobim somente se deu em 1996 (despacho nº80/96, excluindo da área a demarcar parte das terras atualmente reivindicadas por arrozeiros). Noutros termos, nulidade haveria tão-somente se os interessados requeressem e lhes fossem negados pela Administração Federal seus ingressos no feito, o que jamais ocorreu.

109. O mesmo é de se dizer quanto à participação de qualquer das etnias indígenas da área: Ingarikó, Macuxi, Patamona, Wapichana e Taurepang. Sendo que somente se apresentaram para contribuir com os trabalhos demarcatórios os Makuxi, filiados ao Conselho Indígena de Roraima – CIR. Os demais indígenas, tirante os Ingarikó, atuaram diversas vezes nos autos com cartas e petições. Todos forneciam informações e nenhum deles subscreveu o relatório nem o parecer antropológico, elaborados pela antropóloga Maria Guiomar Melo, servidora da FUNAI e pelo Prof. Paulo Santilli, respectivamente.

110. Também não vejo como causa de nulidade o fato de o advogado responsável pelo parecer jurídico (Felisberto Assunção Damasceno) haver sido indicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Tal parecer não foi além de sua natureza opinativa e passou pelo crivo da Presidência da FUNAI, da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça e de outras instâncias administrativas em sucessividade processual endógena, como, v.g., o Consultor Jurídico da Casa Civil da Presidência da República. É o que também penso quanto à alegada não participação de membros do grupo oficial de trabalho na confecção de laudo antropológico, bem assim no que tange ao fato de servidores administrativos, devidamente treinados, efetivarem levantamentos de índole meramente censitária de pessoas e bens.

[...]

Relativamente à Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima - SODIUR, entidade que, conforme os fatos narrados no laudo produzido em Juízo, não foi ouvida no curso do processo demarcatório, vale transcrever trecho de reportagem veiculada no sítio eletrônico do Jornal “Folha de São Paulo”, em 27 de janeiro de 2009:

Índios invadem sede da Funai em Boa Vista e Dourados Índios invadiram nesta terça-feira prédios da Funai em Boa Vista (RR) e Dourados (MS). Em Boa Vista, índios ligados à Sodiur (Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima) entraram no final da tarde na sede do órgão federal. Segundo o presidente da Sodiur, Silvio da Silva, os índios invadiram o prédio em protesto contra a possível retirada dos habitantes não-índios do interior da terra indígena Raposa/Serra do Sol. O grupo é favorável à permanência dos arrozeiros no local. O caso aguarda definição do STF (Supremo Tribunal Federal).

http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u495227.shtml. Acessado em 18 de fevereiro de 2009.

Verificam-se, portanto, irregularidades no tocante ao procedimento administrativo visando a definir as terras indígenas. Não se sabe ao certo: a) as razões pelas quais o laudo foi subscrito por apenas um integrante do grupo, a Dra. Maria Guiomar de Melo - no voto do relator, está consignada a participação do antropólogo Paulo Santilli); (b) se todos efetivamente tiveram ciência de que integravam o grupo; (c) se foram ouvidas todas as etnias interessadas.

PREJUÍZOS À ECONOMIA DO ESTADO DE RORAIMA CASO A DEMARCAÇÃO DA RESERVA INDÍGENA OCORRA EM ÁREA CONTÍNUA

De acordo com informações colhidas do memorial da União, a Reserva Raposa Serra do Sol corresponde a 7,79% do território do Estado de Roraima. Se englobadas todas as terras indígenas pertencentes ao referido ente, chega-se ao patamar de 46% do território estadual. Segundo alega a União, ainda assim a área não abrangida pelas reservas é mais extensa do que Estados como Alagoas, Espírito Santo e Rio de Janeiro.

Com fidelidade e revelando que a controvérsia envolve, na maior parte, indígenas aculturados, destaca o fato de ali habitar a terceira maior população indígena do país, produtora de 50 toneladas de milho, 10 toneladas de arroz e 10 toneladas de feijão anuais bem como proprietária de 35.000 cabeças de gado, com venda de 3.000 bezerros ao ano (folha 9806, volume 39). Afirma contribuírem os indígenas com a economia estadual.

Ressalta representarem as atividades agrícola e pecuária apenas 3,8% do Produto Interno Bruto do Estado de Roraima, ficando atrás, portanto, da Administração Pública - 58,2% -, da construção civil - 6,0% - e do comércio - 9,3% (folha 9806, volume 39).

É certa a existência de fazendas de arroz no local. No relatório da Câmara dos Deputados, encontra-se consignado (folha 6562, volume 25):

[...] A área da reserva inclui fazendas regularmente tituladas pelo INCRA, ou cujo domínio foi assegurado em sentença judicial transitada em julgado. A delicada situação fundiária da Raposa/Serra do Sol envolve ainda a ocupação lícita de terras por não-índios que remonta a meados do século XIX, conforme destacado pelo Ministro Maurício Corrêa na ADI 1.512/RR. O Ministro aponta que a Lei nº 601, de 1850, regulamentada pelo Decreto nº1.818, de 1854, deu legitimação à posse dos que ali detém a terra, bem assim títulos de propriedade foram legitimamente expedidos pelo Estado do Amazonas quando a área ainda estava sob sua jurisdição (período anterior a 1943). Esses proprietários, entretanto, viram-se surpreendidos pela inclusão de suas terras na área pretendida pela FUNAI, em flagrante violação de direitos adquiridos e da coisa julgada.

No laudo pericial, há alusão ao tema (folhas 1528 e 1529, volume 6):

[...]

A economia do Estado de Roraima é ainda frágil e altamente dependente dos recursos federais. As novas perspectivas com a produção de grãos no lavrado (savanas) e de arroz irrigado nas várzeas estão a se apresentar como possíveis soluções para o problema econômico do Estado.

Apesar das atuais atividades econômicas (arroz irrigado, pecuária e grãos) do Estado de Roraima não estarem ainda contribuindo de forma significativa para o desenvolvimento regional nem representarem fonte importante de recursos públicos para o governo estadual. Na falta de uma política agropecuária consistente por parte do Estado de Roraima, devido à instabilidade da estrutura fundiária e às ameaças de desapropriação pela FUNAI, a atividade pecuária tem decrescido sistematicamente. A evolução histórica da produção de arroz na região Raposa Serra do Sol demonstra que essa atividade vem ganhando força econômica, ao longo dos últimos anos, além de apresentar alta produtividade.

[...]

Independentemente de existirem áreas relativamente equivalentes para a produção agropecuária fora das áreas indígenas (principalmente Raposa Serra do Sol), a demarcação em área contínua traria fortes reflexos imediatos na produção agropecuária do Estado de Roraima, comprometendo um longo trabalho de planejamento agrícola realizado por órgãos públicos de pesquisa agropecuária, nos últimos anos.

A situação gerada pela demarcação em área contínua pode comprometer irreversivelmente a possibilidade de futura expansão da fronteira agrícola que poderia gerar alto crescimento econômico para o Estado, com reflexos no número de empregos e na oferta de alimentos abundantes e relativamente baratos para a Região Norte. Com o bloqueio de grandes áreas de savana atualmente utilizadas comercialmente pela agropecuária na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, poderia gerar de imediato forte pressão para implantação de novas pastagens em áreas florestais das bacias dos rios Uraricoera e Amajarí, por exemplo, bem como no Sul do Estado, causando, sem dúvida, elevados índices de desmatamentos.

A homologação da Área Indígena Raposa Serra do Sol, em área contínua, poderia gerar um êxodo rural, principalmente para a cidade de Boa Vista, de:

a. não índios empregados das propriedades agropecuárias que seriam desativadas;

b. não índios ligados a outras atividades comerciais e urbanas;

c. índios que estavam empregados nas atividades agropecuárias da região; e

d. índios que, de alguma forma, dependiam de atividades conjuntas com não índios.

Essa migração poderia agravar os atuais problemas de inchamento urbano da capital do Estado, devido à impossibilidade dessas pessoas serem absorvidas pela frágil economia atualmente existente em Roraima.

A União, apesar de reconhecer o grande crescimento geográfico das fazendas de arroz, afirma ter a produção dessa cultura se mantido estável desde 1992, não caracterizando atividade imprescindível ao desenvolvimento econômico do Estado (folha 9807, volume 39). Aduz estar a atividade agrária impulsionada por incentivos fiscais, o que afasta prejuízo na arrecadação. Além disso, assevera ser atividade mecanizada, o que não implica a perda de empregos.

Sustenta existirem apenas sete arrozeiros questionando ainda a legalidade da demarcação. No entanto, como antes salientado, a própria União reconhece ser a área de lavoura na região demarcada sete vezes maior, em extensão, do que a observada em 1992. Destaca grave desrespeito à legislação ambiental.

Um ponto que merece ser rechaçado é o de que a demarcação em ilhas implica ofensa a tratados de direitos humanos, que garantem a proteção a terras indígenas. Os direitos indígenas são distintos nos países americanos. Nos Estados Unidos, por exemplo, permite-se a ocorrência de um sistema jurídico próprio dentro das comunidades indígenas. Há notícia de existirem mais de 150 desses sistemas. E o país reconhece as decisões tomadas no âmbito das tribos, inclusive com possibilidade de execução21 nas Cortes Americanas.

Transcrevo trecho do discurso de Santiago A. Cantón, Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em que abordou as conclusões de caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a demarcação das terras Ianomâmi:

http://www.law.harvard.edu/students/orgs/hrj/iss14/williams.shtml#Heading388. Acessado em 15 de janeiro de 2009.

No que se refere aos casos já decididos, há dois especialmente ilustrativos. O caso ianomâmi, decidido em 1985, fixou algumas referências iniciais na jurisprudência da Comissão sobre a relação entre a proteção dos direitos humanos e o meio ambiente. A queixa se referia à exploração de recursos naturais na região amazônica, inclusive à abertura de uma estrada em propriedades que tradicionalmente haviam estado em poder dos ianomâmi. Com a estrada sobreveio a invasão de operários, mineiros e colonizadores, o deslocamento de comunidades e a introdução de doenças contra as quais os ianomâmi careciam de mecanismos de defesa; as conseqüências foram devastadoras.

As leis nacionais previam a demarcação das terras indígenas ancestrais, mas no caso dos ianomâmi isso não ocorreu. A Comissão recomendou a demarcação do território como medida essencial para remediar as violações. Ademais, a Comissão recomendou que os programas destinados ao atendimento das comunidades fossem realizados após consulta aos afetados.

O dever de adotar medidas preventivas razoáveis nos casos de ameaça à vida e à integridade física e de consultar os afetados quanto à formulação e à aplicação da política pública são os dois princípios essenciais articulados nesse relatório.

Como se percebe, há sim a obrigação de o país demarcar as terras indígenas – o que, aliás, é imposto pela própria Constituição Federal –, as não existe um modelo demarcatório claramente definido, contínuo ou em ilhas, nem a exigência de se ter como válido um processo que apresentou

vícios, desde a elaboração do laudo antropológico.

Cumpre asseverar ser direito humano a proteção da propriedade privada. O simples reconhecimento de que terras privadas, intituladas pelo Estado (gênero), cuja legalidade dos títulos foi apurada em processo judicial transitado em julgado, nunca pertenceram aos respectivos proprietários poderá levar o Brasil a responder no cenário internacional. Eis o artigo 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de São José da

Costa Rica:

Trecho da EXPOSIÇÃO DO EMBAIXADOR SANTIAGO A. CANTÓN, SECRETÁRIO EXECUTIVO DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, SOBRE O TEMA “DIREITOS HUMANOS E MEIO AMBIENTE”, AG/RES. 1819 (XXXI-O/01) (Sessão da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos de 11 de abril de 2002)

[...]

Artigo 21º - Direito à propriedade privada 1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social. 2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei. 3. Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser reprimidas pela lei.

[...]

À luz dessas observações, novamente ressalto a necessidade de se fomentar o processo de elementos fáticos imprescindíveis ao deslinde, que deveriam ter sido colhidos durante a instrução. Sou favorável à demarcação correta. E esta somente pode ser a resultante de um devido processo legal, mostrando-se imprópria a prevalência, a ferro e fogo, da óptica do resgate de dívida histórica, simplesmente histórica – e romântica, portanto, considerado o fato de o Brasil, em algum momento, haver sido habitado exclusivamente por índios. Os dados econômicos apresentados demonstram a importância da área para a economia do Estado, a relevância da presença dos fazendeiros na região.

Difícil é conceber o chamado fato indígena, a existência de cerca de dezenove mil índios em toda a extensão geográfica da área demarcada - uma área doze vezes maior que o Município de São Paulo, em que vivem cerca de onze milhões de habitantes. Para mim o enfoque até aqui prevalecente soa desproporcional a discrepar, a mais não poder, da razoabilidade.

E tudo, repito à exaustão, resultando de um processo demarcatório cujos elementos coligidos se mostram viciados, como se não vivêssemos em um Estado de Direito. Aliás, surge paradoxo no que se assenta que a posse indígena a ser reconhecida e preservada é a existente à data da promulgação da Constituição - premissa de todo harmônica com o § 1º do artigo 231 nela contido - e, em passo seguinte,desconhecendo-se o envolvimento de áreas limitadas, conclui-se pela subsistência da demarcação contínua, com limitações à liberdade de ir e vir de brasileiros, em verdadeiro apartheid, com o atropelo de situações devidamente constituídas, quer por títulos de propriedade reconhecidos como de bom valor pelo Estado, quer por decisão judicial. E tudo isso ocorre com abrangência incomum porque envolvidos índios e descendentes de índios aculturados e não povos indígenas em condições primitivas. A todos os títulos, tem-se, de um lado, situação inusitada – grande área na qual o cidadão comum não poderá entrar – e, de outro, adoção de critério que extravasa em muito o que concebido pelo Constituinte de 1998.

http://www.estadao.com.br/interatividade/Multimidia/ShowEspeciais!destaque.action?destaque.idEspciais=631. Acessado em 15 de janeiro de 2009.

A política indigenista nacional sempre foi dirigida à integração. A partir da colonização, passando pelo Império e chegando aos dias atuais, isso tem sido uma constante. Na primeira época, houve até mesmo ato do Marquês de Pombal voltado à miscigenação, estimulando-se o estabelecimento de relação carnal e sentimental entre portugueses e índias. Como efeito dessa política, notou-se, com o decorrer dos anos, o

avanço intelectual de descendentes de índios. Cito o exemplo de ex-Governadores do Estado do Amazonas. Gilberto Mestrinho é filho de índio e Amazonino Mendes, neto. A informação está registrada em publicação do ex-Governador de Sergipe e ex-Ministro do Interior, de 1987 a 1990, João Alves Filho, que, por sinal, é bisneto de índio.

Para ter-se ideia do envolvimento de índios aculturados, em número significativo, não bastasse a política indigenista de integração havida desde a época de Nóbrega e Anchieta, passando mais recentemente pelo Marechal Rondon, constata-se a integração no campo político. O Prefeito do Município de Normandia – Orlando Oliveira – é da etnia Macuxi. O Prefeito do Município do Uiramutã – Eliésio Cavalcante de Lima - também é dessa etnia. O Vice-Prefeito do Município de Pacaraima – Albertino Dias de Souza – é da etnia Ingaricó. Das nove cadeiras da Câmara de Vereadores no Município de Normandia, três são ocupadas por descendentes de índios – Valdir Tobias, Davi Marcos Napoleão e João Menezes da Silva Neto. Já a Câmara do Município de Uiramutã, também contando com nove cadeiras, tem sete vereadores cuja ascendência é indígena: Albertino Dias de Souza, Dílson Domente Ingaricó, Eronildo Ensoro, Irmão Antonio, Manoel Bigode, Milton e Professor Damásio. Relativamente ao Município de Pacaraima, a Câmara, onde, do mesmo modo, existem nove cadeiras, são descendentes de índios os vereadores Professor Roseno e Diura Jane de Brito Tupinambá.

João Alves Filho – pronunciamentos, artigos e entrevistas (1987-1990)”. Brasília, 1990.

Como, então, em pleno século XXI, considerados os avanços culturais de toda ordem, cogitar-se de isolamento da população indígena, procedendo-se à delimitação territorial contínua para afastar-se da área os não-índios? O retrocesso é flagrante, não se coadunando com os interesses maiores de uma nacionalidade integrada.

As lutas incessantes pela almejada unidade, especialmente as capitaneadas por Dom Pedro II, não podem ser olvidadas, menosprezando-se a cláusula proibitiva da distinção presente a origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer formas de discriminação. A óptica contrária desconsidera objetivo fundamental da República Federativa do Brasil – construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º).

Então, há de reconhecer-se a inteira procedência do que bem disse o professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Denis Lerrer Rosenfield em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo de 8 de dezembro de 2008:

A homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, de forma contínua ou descontínua, coloca um problema de ordem cultural e histórica, que concerne ao processo de formação de nosso próprio país. Na verdade, duas abordagens se defrontam: a da demarcação contínua, procurando fechar esse território como nação, numa economia de autosubsistência; e a da demarcação descontínua mantendo intercâmbio entre as populações indígena, mestiça e branca...

... Vários pensadores e etnólogos se dedicaram a essa questão, com rigor científico e uma visão de integração dos indígenas à sociedade brasileira: Karl Von den Steinen, Hebert Baldus, Eduardo Galvão, Egon Schaden e Darci Ribeiro, entre outros. Eram etnólogos com profunda visão humanista, e não ideólogos que advogavam por um suposto retorno a uma situação idílica e falsa de um estado de natureza bom e harmônico. Seguiam a ciência, e não a religião, como ocorre hoje com a política do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a orientação correlata da FUNAI.

Então, advertiu que a demanda dos índios é por postos de saúde e não pela volta do pajé, consignando:

A demanda do caso é por postos de saúde, com enfermeiros, médicos e medicamentos e não pela volta do pajé. A demanda é por uma educação que, resgatando as tradições indígenas, ofereça a eles a possibilidade de uma boa integração ao mundo civilizado. A demanda não é por ausência de trabalho, mas por condições dignas de trabalho, não tornando o indígena um novo miserável urbano. A questão consiste numa adaptação eficaz e controlada ao mundo civilizado, de tal maneira que cause a menor dor possível aos indígenas e que estes possam usufruir os produtos da sociedade ocidental, almejados por eles mesmos. Tudo depende, evidentemente, do grau de aculturação em que se encontrem as diferentes tribos, não devendo haver uma regra de conduta única, mas políticas adaptadas a cada situação. A educação dos jovens, por exemplo, é uma forma de adaptação que se escalona no tempo e propicia, se bem feita, uma integração harmoniosa. Uma interação satisfatória deveria necessariamente contemplar a integração econômico-cultural, condição de novas formas de prestígio, auto-estima e aquisição de bens.

INSTABILIDADE QUANTO À SEGURANÇA NACIONAL – FAIXA DE FRONTEIRA DO BRASIL COM A VENEZUELA E GUIANA

O Plenário, no julgamento do Mandado de Segurança nº 25.483-1/DF, relatado pelo ministro Carlos Ayres Britto, concluiu não ser a manifestação do Conselho de Defesa Nacional requisito de validade da demarcação de terras indígenas, mesmo daquelas situadas em região de fronteira. Eis a ementa:

MANDADO DE SEGURANÇA. HOMOLOGAÇÃO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS RAPOSA SERRA DO SOL. IMPRESTABILIDADE DO LAUDO ANTROPOLÓGICO. TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS POR ÍNDIOS. DIREITO ADQUIRIDO À POSSE E AO DOMÍNIO DAS TERRAS OCUPADAS IMEMORIALMENTE PELOS IMPETRANTES. COMPETÊNCIA PARA A HOMOLOGAÇÃO. GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ADMINISTRATIVO. BOA-FÉ ADMINISTRATIVA. ACESSO À JUSTIÇA. INADEQUAÇÃO DA VIA PROCESSUALMENTE ESTREITA DO MANDADO DE SEGURANÇA. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.

[...]

Cabe à União demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (caput do artigo 231 da Constituição Federal). Donde competir ao Presidente da República homologar tal demarcação administrativa. A manifestação do Conselho de Defesa Nacional não é requisito de validade da demarcação de terras indígenas, mesmo daquelas situadas em região de fronteira.

[...]

Mandado de Segurança parcialmente conhecido para se denegar a segurança.

Noto não ter estado presente à sessão, conforme noticiado no extrato de ata:

Decisão: O Tribunal, à unanimidade, conheceu em parte do mandado de segurança e, na parte conhecida, denegou-o, nos termos do voto do Relator. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa. Falaram, pelos impetrantes, o Dr. Luiz Valdemar Albrecht; pela Advocacia-Geral da União, a Dra. Gracie Maria Fernandes Mendonça, Advogada-Geral Adjunta e, pelo Ministério Público Federal, o Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos. Plenário, 04.06.2007.

Em laudo pericial, consignou-se (folhas 1531 e 1532, volume 6):

[...]

A área Raposa Serra do Sol, no caso de ser homologada de forma contínua, terá pouca densidade demográfica, vasta extensão de fronteira e controle limitado do Estado-Nação, o que poderá favorecer:

A garimpagem ilegal;

O contrabando;

O narcotráfico;

Refúgio para criminosos do Brasil, Guiana e Venezuela;

O surgimento de movimentos separatistas; e

Outros ilícitos.

A diminuição do controle do Estado-Nação sobre os destinos ambientais e estratégicos da Área do Norte/Nordeste de Roraima, entre a serra de Pacaraima e os cursos do Maú/Tacutu encerra questões de interesse nacional e proteção cultural e ambiental emblemáticas, quais sejam:

i. Vasta área de rochas proterozóicas riquíssimas em recursos minerais ainda intocados (ouro e diamante, entre outros), e única no norte da Amazônia (vide CPRM, 1990 e DNPM- Projetos e Molibdênio de Roraima), em fronteira trinacional (cópia anexa do mapa de áreas de futuras prospecções, recomendada pelo relatório geológico de 1990);

ii. Enorme espaço de biodiversidade ainda tão pouco estudado pela sociedade brasileira, apesar de solos predominantemente pobres e de baixa capacidade de suporte (Schaefer, 1991), oficialmente reconhecido no documento do MMA como a área RN024- Território Indígena (TI);

iii. São Marcos e TI Raposa Serra do Sol (Avaliação e Identificação de ações prioritárias para conservação, utilização... da Biodiversidade na Amazônia Brasileira, 1990);

iv. área de elevada importância ambiental, que carece de medidas de proteção efetivas para sua conservação; área de grande interesse geopolítico devido aos problemas de limites entre a Guiana e a Venezuela. Além disso, a possível diminuição do Estado em área tão complexa pode configurar grave erro histórico, que poderá suscitar futuras questões territoriais como processos de secessão, ou de integração, visto o ocorrido na Revolta do Rupununi (1969), quando índios habitantes da fronteira com o Brasil, comandados por fazendeiros, se rebelaram contra o governo da Guyana e tentaram proclamar um Estado independente, imediatamente sufocada pelas autoridades de Georgetown. Existem evidências que este movimento foi em parte promovido pela Venezuela como forma de pressão em sua disputa territorial pela margem esquerda do Rio Essequibo.

Opinião semelhante é a do Comandante da Amazônia, General Augusto Heleno, externada em palestra no Clube Militar. Eis o que publicado no sítio eletrônico G1 - Globo Notícias:

http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL404097-5601,00.html. Acessado em 22 de agosto de 2008

General considera terra indígena de fronteira risco à soberania

RIO DE JANEIRO (Reuters) - O general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, classificou a transformação da faixa da fronteira norte do país em terras indígenas como ameaça à soberania nacional. O militar não se mostrou preocupado em contrariar posição do governo, que defende a homologação de terras indígenas mesmo em regiões de fronteira, e disse que o Exército "serve ao Estado brasileiro e não ao governo". Em palestra sobre a defesa da Amazônia no seminário "Brasil, ameaças a sua soberania", nesta quartafeira, no Clube Militar, no Rio de Janeiro, o general falou de sua preocupação com os territórios indígenas na faixa de fronteira.

O general lembrou o compromisso brasileiro com declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o direito dos povos indígenas, que destaca a desmilitarização das terras indígenas como contribuição para a paz e o desenvolvimento econômico e social. "Quer dizer que o problema somos nós?", perguntou o general sob aplausos entusiasmados da platéia de militares. Para o general Heleno, a política indigenista está dissociada do processo histórico do país e precisa ser revista com urgência. "É um caos, não funciona. Os problemas são enormes, o alcoolismo é crescente", disse o general referindo-se à situação de tribos amazônicas.

"Sou totalmente a favor do índio", frisou o general. "Não sou da esquerda escocesa que atrás de um copo de uísque resolve os problemas brasileiros. Eu estou lá na Amazônia vendo o que acontece com o índio brasileiro." O general reiterou sua posição contrária à demarcação contínua da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, que quase levou a um conflito violento entre a Polícia Federal e arrozeiros que serão obrigados a deixar a área.

Uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a operação da Polícia Federal que desalojaria os fazendeiros de arroz que se recusam a deixar terras da reserva. Cinco grandes plantadores de arroz possuem oito fazendas na área indígena. O governo se propõe a pagar indenização pelas benfeitorias. Segundo o general, o índio também é brasileiro e não deve ser excluído da convivência com outros brasileiros. "Quer dizer que na Liberdade vai ter japonês e não japonês", comentou o general utilizando como exemplo o bairro paulista de forte presença japonesa. "Como um brasileiro não pode entrar numa terra só porque não é indígena", questionou.

Além da questão indígena, o general Heleno apresentou como ameaças à Amazônia os conflitos fundiários, as organizações não-governamentais e os diversos ilícitos. Em sua opinião, o desenvolvimento da Amazônia vai acontecer independentemente da nossa vontade. "É impossível preservar a Amazônia como lenda, floresta verde. O que depende de nós é fazer com que (o desenvolvimento) aconteça de forma sustentável", defendeu.

Importa verificar as preocupações veiculadas pelo jornal O Estado de São Paulo, em editorial publicado na edição de 22 de janeiro de 2004, intitulado “Em causa a segurança nacional”:

http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2004/1/22/noticia.101516/

Não sabemos se o mais grave seria o fato de o Ministério da Justiça, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e todos os que no governo federal se envolveram com a iniciativa de homologar a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, conhecerem ou desconhecerem os relatórios encaminhados ao Palácio do Planalto por órgãos de inteligência do governo, inclusive das Forças Armadas, apontando o risco que aquela demarcação, se feita em terras contínuas, poderá trazer à

segurança do País. Se os conhecessem seria um contra-senso não atentar para suas graves advertências - a não ser que atribuíssem valor irrisório a sua credibilidade - e, se os desconhecessem, algo estaria muito mal na coordenação estratégica governamental. De qualquer forma, é bem possível que quando tiveram a idéia de levar avante essa demarcação os próceres indigenistas do governo não imaginavam o tamanho do problema que estavam criando, no capítulo que diz respeito à integridade territorial e

soberania do País.

De acordo com esses relatórios reservados, a demarcação em Roraima poderá causar "prejuízos para a segurança do País, para o desenvolvimento da região, além do risco de grave conflito" entre os que defendem e os que são contrários à reserva. Por sua vez, diz o general Luiz Lessa, presidente do Clube Militar, ex-comandante militar da Amazônia e profundo conhecedor da região: "É um absurdo (a demarcação contínua) porque há gerações de brasileiros que foram criados ali e não se pode, simplesmente, extinguir dois municípios." E acrescenta: "Ninguém é contra a demarcação, mas que ela seja feita em ilhas, porque as pessoas não podem ser expulsas do local onde moram e trabalham. Está faltando visão estratégica e de segurança." Para ele a polêmica é fruto da "pressão internacional (das ONGs) e o governo não está atento para o fato de que aquela área, que é de fronteira, é sensível e pode se transformar em um ponto de conflito".

Mas não são só os setores de inteligência do governo e militares que vêem nessa questão um risco à segurança nacional. Também setores acadêmicos revelam a mesma preocupação. O coordenador do Núcleo de Análise Interdisciplinar de Políticas e Estratégias (Naippe) da USP, Braz Araújo, e o pesquisador Geraldo Lesbat Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, sustentam que a demarcação da área indígena de Roraima em terras contínuas vai pôr em risco a segurança das fronteiras brasileiras. "Não existe outro país que permita que alguém ou um grupo tenha soberania na faixa de fronteira", argumenta Cavagnari, enquanto Araújo diz que "o Brasil vem fazendo demarcação de terras indígenas sem visão estratégica clara, apenas atendendo a demandas demagógicas". E o cientista da USP salienta, em matéria publicada ontem neste jornal, o que nos parece o aspecto mais grave na questão, ao lembrar que a região amazônica não está apenas em solo brasileiro e que há "contenciosos territoriais entre países da região".

O ministro da Justiça resolveu criar um grupo interministerial, para resolver o impasse gerado pela demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. Trata-se de uma "força-tarefa" que já agendou reuniões com os grupos de índios favoráveis e contrários à homologação da reserva, com representantes do governo estadual, da Igreja Católica, dos evangélicos, do Ministério Público Federal e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - e com os produtores rurais, não terá agendado?! Thomaz Bastos, agora, diz estar absolutamente convencido de que "as coisas precisam ser feitas com método e calma". Pena que o ministro não tivesse tido esse "método" e essa "calma" antes de anunciar a homologação demarcatória daquela reserva. Pois, como era de se prever, esse simples anúncio fez soar os tambores de guerra em um número cada vez maior de regiões do território nacional, visto que todo esse território - sempre é bom lembrar – já pertenceu integralmente às comunidades indígenas. Mato Grosso do Sul - com 14 fazendas ocupadas por índios, uma ordem judicial de reintegração de posse não cumprida, invasores jurando que resistirão até a morte, repórteres sendo recebidos à bala, etc.; Rio Grande do Sul, com estrada bloqueada pelos índios cainguangues; Alagoas e Bahia, com índios reivindicando áreas onde o governo assentou populações removidas por causa da construção de represas; enfim, parece que toda uma "demanda" reprimida - talvez desde o Descobrimento - dos que tiveram seus ancestrais expulsos de suas terras, pelos colonizadores portugueses, está vindo à tona.

A União alega não haver motivos para temer qualquer ato no sentido de se ameaçar a soberania do Brasil. Sustenta mesmo, pasmem, dever ser vista a presença exclusivamente indígena em área de fronteira como estratégia de

segurança nacional (folha 22), sufragando, implicitamente, a teoria das fronteiras mortas. Afirma mostrar-se plenamente possível a afetação ao uso das Forças Armadas, em se tratando de área indispensável para a segurança nacional, de área qualificada como indígena, consoante o disposto no Decreto nº4.412/2002.

Art. 1o No exercício das atribuições constitucionais e legais das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras tradicionalmente ocupadas por indígenas estão compreendidas:

I - a liberdade de trânsito e acesso, por via aquática, aérea ou terrestre, de militares e policiais para a realização de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, policiamento e demais operações ou atividades relacionadas à segurança e integridade do território nacional, à garantia da lei e da ordem e à segurança pública;

II - a instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para fiscalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias;

III - a implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira.

Vejam o que versa a Portaria nº 534/2005, ato normativo impugnado na presente ação:

[...]

Art. 5º É proibido o ingresso, o trânsito e a permanência de pessoas ou grupos de não-índios dentro do perímetro ora especificado, ressalvadas a presença e a ação de autoridades federais, bem como a de particulares especialmente autorizados, desde que sua atividade não seja nociva, inconveniente ou danosa à vida, aos bens e aoprocesso de assistência aos índios.

[...]

Eis como se pronunciou o Ministério Público Federal sobre o tema (folhas 403 e 404, volume 2):

[...]

40. A preocupação que vem sendo externada por comandante militar não parece, com as vênias devidas, procedente. De há muito são demarcadas áreas indígenas em faixa de fronteira, sendo exemplo recorrente o da área yanomami, toda ela em faixa de fronteira, em território de 10 milhões de hectares, objeto de portaria declaratória firmada, no início da década de 90, pelo então Ministro da Justiça Jarbas Passarinho, eminente integrante das nossas Forças Armadas.

41. O atual Ministro da Defesa, Nelson Jobim, por diversas vezes, na condição de Ministro da Justiça, afirmou que a localização de áreas indígenas em faixa de fronteira não inviabiliza o seu reconhecimento como tal. Em despacho de 20 de dezembro de 1996, no exame do caso específico de que trata a presente (documento anexo), concluiu:

“4.3.5. Sobre a ‘faixa de fronteira’ e parques nacionais Ressalte-se, ainda, que a localização de área indígena em faixa de fronteira não encontra óbice jurídico. A Constituição Federal não estabeleceu qualquer restrição à demarcação de terras indígenas em faixa de fronteira. A qualificação jurídica das terras como ‘faixa de fronteira’ implica limitações de ocupação e de utilização que não guardam qualquer incompatibilidade com o domínio privado e, muito menos, com o público, ressalvadas as restrições estabelecidas em lei.”

42. A concepção do Projeto Calha Norte, para a defesa das fronteiras nacionais, é de ocupação humana. Se a demarcação de áreas indígenas é vista como ameaça às nossas fronteiras, das duas, uma: ou se recusa aos índios a condição de humanos, ou se os tem por incapazes para os fins daquele projeto, conclusões, no mínimo, inadequadas.

[...]

O ministro Menezes Direito, nas conclusões do voto-vista formalizado, assim se manifestou:

[...]

Destarte, julgo parcialmente procedente a presente ação popular para que sejam observadas as seguintes condições impostas pela disciplina constitucional ao usufruto dos índios sobre suas terras:

[...]

(v) usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional) serão implementadas independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;

(vi) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;

Vale, ainda, recordar o que preceituado no § 2ºdo artigo 20 da Carta Federal:

Art. 20. [...]

[...]

§ 2º A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.

Observem a necessidade de se conferir eficácia máxima aos princípios constitucionais. O Conselho de Defesa Nacional está previsto no artigo 91 da Lei Fundamental, tendo, entre as competências definidas, as de: (a) propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre o efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo; (b) estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias a garantir a independência nacional e a defesa do Estado Democrático.

Como não proferi voto na assentada em que julgado o Mandado de Segurança nº 25.483-1/DF, quando a Corte concluiu pela desnecessidade de oitiva do Conselho de Defesa Nacional, não posso deixar de registrar convicção sobre a matéria. Entre o interesse individual e o coletivo, homenageio o coletivo. Homenageio também o perfeito funcionamento das instituições. Se é verdade que não há norma proibindo terras indígenas em faixa de fronteira, do mesmo modo é verdade que, na Lei Maior, está expressamente consignada a importância fundamental dessa faixa para a defesa do território brasileiro. Revelava-se, pois, imprescindível a participação do Conselho de Defesa Nacional, ante a possibilidade de existirem instabilidades naquela área da fronteira tríplice, área em que se encontram os territórios do Brasil, da Guiana e da Venezuela.

É público e notório que, em razão das posições ideológicas do atual Chefe de Estado, a Venezuela tem sido o país latino-americano que mais causa tensões no âmbito diplomático, não só em relação ao Brasil, mas também em relação a diversos outros países. As regiões fronteiriças são mais suscetíveis de turbulências e favorecem o contrabando e a presença de narcotraficantes. Lembro o recente episódio, ocorrido em março de 2008, em que o Exército da Colômbia invadiu o território equatoriano e provocou a morte do porta-voz internacional, considerado dirigente número dois do grupo “Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia”, Raúl Reyes.

E aqui não estamos tratando de qualquer ocupação na faixa de fronteira, mas da demarcação de terras indígenas, o que, para alguns, pressupõe a imposição de uma série de restrições na circulação de pessoas para não prejudicar a vida dos índios, na sua grande parte aculturados. Essas ponderações não foram apresentadas nem aos antropólogos nem ao Presidente da República. Talvez, até com a manifestação do Conselho, o desfecho tivesse sido igual. Penso, porém, que, na espécie, não se fez presente o pleno funcionamento das instituições, o pleno funcionamento de um Conselho que, mesmo com natureza de órgão de consulta, possui uma razão de ser, é custeado pela sociedade, que deseja vê-lo ativo. Não conferir essa eficácia ao dispositivo constitucional que determinou a criação do órgão é diminuí-lo.

Faz-se tão evidente a relevância do tema no texto constitucional que, no § 5º do artigo 231, chega-se a autorizar a remoção dos grupos indígenas das terras ocupadas, quando no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso.

A importância da manifestação do Conselho de Defesa Nacional foi reconhecida pelo ministro Menezes Direito. Sua Excelência, porém, considerou ter sido suprida a audiência, não havendo nulidade. Confiram o seguinte trecho do voto-vista proferido:

[...]

Neste caso, a farta divulgação de dados e as manifestações elaboradas sob diversas orientações, civis e militares, que foram levadas ao Ministro da Justiça e ao Senhor Presidente da República, que decidiu sem audiência do Conselho de Defesa Nacional, bem como o próprio julgamento desta Corte, deixam em outros planos de consideração a necessidade de ouvida.

Tal situação se reforça com o precedente encontrado no MS nº 25.483, DJ de 14/9/2007, Relator o Ministro Carlos Britto. Para o futuro, entretanto, com o pronunciamento da Suprema Corte sob a correta interpretação e aplicação do inciso III do § 1º do art. 91, entendo que se tratando de faixa de fronteira é recomendável que seja ouvido o Conselho de Defesa Nacional.

[...]

Não tenho como concordar com o desfecho proposto. Se o texto constitucional exige tal providência, esta deve ser respeitada em todas as ocasiões, inclusive na espécie. Vem à memória o caso Bush versus Gore, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, definidor da eleição presidencial que os envolvia. No precedente, decidido em 12 de dezembro de 2000, o Tribunal americano concluiu transgredir a equal protection clause o sistema de contagem de votos adotado no Estado da Flórida. Porém, ordenou que a recontagem fosse interrompida, ante a necessidade de se respeitar o prazo fatal para encaminhamento do resultado presente o candidato vencedor daquele Estado, que coincidiu com a data do julgamento. Os votos, então, jamais foram recontados. Até hoje se questiona o desenlace da eleição. Quem, de fato, foi o real vencedor. E critica-se a decisão da Corte que, mesmo reconhecendo a violação constitucional, não autorizou o prosseguimento da recontagem, potencializando aspecto temporal. Pairam dúvidas se todos os votos foram computados.

Não podemos proceder, na espécie, da mesma maneira, permitindo mácula no julgamento do Supremo, criando uma nuvem cinzenta sobre a não-observância do devido processo legal. Reconhecer a necessidade de manifestação do Conselho para o futuro, deixando de aplicar o dispositivo constitucional na hipótese, não pode ser admitido. Não se verifica situação de urgência! Friso novamente que o Supremo tem a guarda da Carta Federal e não pode despedir-se desse dever, imposto de forma expressa pelo Constituinte de 1988, sob pena de comprometimento da própria credibilidade. Também sob esse ângulo, porque a Lei Maior não foi observada no que revela como formalidade essencial a audição do Conselho de Defesa Nacional, há de julgar-se procedente o pedido formulado, atentando o Supremo para a responsabilidade que possui. É sua a última palavra sobre a Constituição, e não deste ou daquele órgão.

OFENSA AO EQUILÍBRIO FEDERATIVO, PRESENTE O FATO DE A ÁREA DEMARCADA OCUPAR GRANDE PARTE DO TERRITÓRIO DO ESTADO DE RORAIMA

A Câmara dos Deputados assim deixou registrado (folha 6542, volume 25):

[...]

5. A questão federativa Como já vimos, Roraima está longe de desempenhar plenamente – nos campos fundiário, econômico, fiscal e político-institucional – o papel esperado de um Estado da Federação. Mas os aspectos federativos do conflito em questão vão além. Se o Presidente da República homologar o decreto de demarcação nos termos definidos pela FUNAI, deixará de existir um município inteiro: Uiramutã, cujas terras ficam integralmente dentro da Área Indígena Raposa/Serra do Sol.

Com uma população de 4.742 habitantes, conforme os resultados do último censo do IBGE, o Município foi criado pela Lei nº 98, de 17 de outubro de 1995. A despeito da polêmica, a Comissão pôde constatar que a criação do município expressou a vontade da grande maioria da população local, composta majoritamente por índios. Cerca de dois terços dos 1.727 eleitores então cadastrados ali participaram do plebiscito para emancipação da antiga vila de Uiramutã. Mais de 90% deles votaram a favor da constituição do município, que foi reconhecida expressamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2003.

Embora pobre e com baixíssima densidade demográfica (0,59 habitante por km2), Uiramutã possui três postos de saúde; agência bancária; serviço postal; várias escolas indígenas (muitas, inclusive, vinculadas ao CIR), onde os alunos estudam tanto o português como o macuxi e o ingarikó; e um promissor programa de agricultura familiar, implementado em conjunto com o governo federal, que ajudou o município a conquistar o Prêmio Mário Covas de Município Empreendedor. Outros dois municípios têm áreas sobrepostas às da reserva: Normandia, ao Sul, cuja ocupação remonta a 1904; e Paracaima, a Oeste. Nesses casos, as sedes municipais – compreendendo toda a zona urbana – ficam fora das terras indígenas. Mas o problema é mais grave no Município de Uiramutã. A União Federal não pode desrespeitar a autonomia municipal, nem pode um ente federado simplesmente riscar do mapa outro ente federado.

Quanto ao assunto, o Ministério Público Federal manifestou-se deste modo:

A alegação de ofensa ao equilíbrio federativo e à autonomia de Roraima está divorciada da realidade. A área indígena Raposa/Serra do Sol representa pouco mais de 7% do território daquele Estado, que, desde a sua criação, conta com a presença de numerosos grupos indígenas, sendo a população em questão ali residente a terceira maior do país, só perdendo para aquelas localizadas nos Estados do Amazonas e Mato Grosso. A existência de tal população, aliás, terá sido um dos fatores determinantes da criação do novo Estado.

Volto a afirmar: a ausência de citação do Estado de Roraima e dos Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia – alcançados pela demarcação - para integrar a relação processual surge como vício insanável, a impor o retorno do processo ao estágio próprio.

DAS RAZÕES APRESENTADAS PARA A DEMARCAÇÃO EM FAIXA CONTÍNUA

A União, em memorial apresentado, justifica a demarcação em faixa contínua a partir dos seguintes aspectos:

[...]

V. DA ÁREA RESERVADA À TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. NECESSIDADE DA FAIXA CONTÍNUA. ASPECTOS CULTURAIS, PRODUTIVOS E RELIGIOSOS.

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, conforme disposição contida no decreto homologatório, ocupa uma faixa contínua de 1.747.464 hectares, ou seja, 14.474,64 km2 (área representada por todo o Estado de Roraima), equivalendo menos de 8% do território estadual. Na região, existem 194 aldeias, nas quais vivem aproximadamente 19.000 indígenas de cinco etnias, quais sejam: Macuxi, Wapixana, Patamona, Ingaricó e Taurepang, que se comunicam através de dialetos oriundos de uma mesma língua denominada Pemon/Kapon.

Todas essas aldeias são formadas por índios que compõem o mesmo grupo familiar, havendo relações matrimoniais entre membros de tribos diferentes, posto que os vínculos de parentesco acabam por impedir os casamentos entre membros da mesma tribo.

Assim, embora distintos, os grupos indígenas ocupam áreas próximas, contidas dentro de um território único, qual seja, a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol, que permite aos indígenas a mobilidade e a interação necessários à sua reprodução física, segundo seus usos, costumes e tradição.

Como já relatado acima, a atividade indígena deve ser preservada num sentido amplo. A Constituição Federal reconhece não apenas a ocupação física das áreas habitadas pelas tribos, mas, sim, a ocupação tradicional do território indígena, o que significa reconhecê-lo como toda a extensão de terra necessária à manutenção e preservação das particularidades culturais de cada grupo.

São incorporadas não só as áreas de habitação permanente e de coleta, mas também todos os espaços necessários à manutenção das tradições do grupo. Entram nesse conceito, por exemplo, as terras consideradas sagradas, os cemitérios distantes e as áreas de deambulação. Assim ao se garantir que a Reserva Serra do Sol fosse demarcada em uma faixa contínua de terras, procurou-se atender a todos os requisitos legais atinentes à matéria, preservando-se a identidade histórica e cultural dos silvícolas que lá habitam. Com efeito, a alteração do território original de Raposa Serra do Sol, por meio da demarcação de “ilhas”, dificultaria o ritual acima descrito, em nítida ofensa ao texto constitucional, que protege as terras necessárias à reprodução física e cultural dos indígenas.

[...]

Outro aspecto de relevo é que a produção agrícola na reserva é realizada segundo o modelo de revezamento das áreas de plantação. De tempos em tempos, os índios abandonam as áreas de plantio, reiniciando a lavoura em novas terras. Após um certo período, retornam aos terrenos abandonados, e lá reiniciam a atividade agrícola. De fato, a fragmentação de Raposa Serra do Sol impediria a prática da agricultura nesse modelo, em contrariedade à Constituição Federal, que protege as terras indígenas utilizadas para as atividades produtivas. Com feito, restringindo-se a área ocupada pelos índios, não seria mais possível realizar o revezamento dos terrenos de plantio, em prejuízo da agricultura indígena.

Cumpre ainda asseverar que na Reserva Raposa Serra do Sol localiza-se o Monte Roraima (Parque Nacional do Monte Roraima), que possui grande significado místico para todas as etnias que vivem nas aldeias da reserva. A demarcação em ilhas privaria muitas das comunidades da reserva do acesso ao monumento, impedindo, consequentemente, o direito constitucionalmente garantido ao livre exercício de suas crenças.

Sobre o tema, vale observar algumas passagens do laudo antropológico (folha 448, volume 2):

4. SITUAÇÃO ATUAL

É extremamente complexo realizar uma análise sociológica sobre a situação vigente na área. Por um lado, a diversidade cultural impossibilita ao pesquisador ter um conhecimento abragente sobre os fenômenos culturais que permeiam cada uma das etnias. Por outro lado, a penetração da sociedade envolvente ocorrida através de várias frentes de expansão e em momentos históricos distintos dificulta uma análise sistemática entre os índios e os regionais. Ao nos defrontarmos com um universo tão distinto, em um curso espaço de tempo, observamos ser viável realizar apenas uma análise das relações interétnicas existentes na região. As relações vigentes entre os índios (diversas etnias) com os segmentos da sociedade nacional, que são representados por vários grupos, categorias profissionais e classes sociais.

Abaixo, a conclusão (folha 468, volume 2):

[...]

A demarcação da Área Indígena Raposa/Serra do Sol não afetará negativamente a economia do Estado de Roraima. A atividade pecuária extensiva, da forma que é praticada dentro da área indígena, não necessita de muito investimento de capital para ser realizada. O que faz com que a atividade não tenha muita produtividade ou rentabilidade, faltando assim contribuir de maneira substancial para a economia do novo estado. Ademais o Estado possui outras áreas de lavrado onde a pecuária ainda pode se desenvolver. A demarcação não trará socialmente efeitos dramáticos: e uma combinação da atividade pecuária com outras atividades que faz possível a sobrevivência econômica da maioria dos ocupantes da área indígena; mais da metade deles não moram dentro da área indígena e as ocupações não empregam muita mão-de-obra de não-índios. A demarcação da terra afetará crucialmente 61 ocupantes que nela tem suas atividades principais, mas que certamente terão mais condições de se refazer economicamente do que 1778 pais de família índios.

As fazendas, sítios e garimpos localizados na área trazem inúmeros prejuízos às comunidades indígenas, que estão impedidas de crescer em todo o seu potencial social, econômico e cosmológico. Os inúmeros conflitos envolvendo fazendeiros, garimpeiros e índios, com conseqüências graves e não raras fatais para as comunidades indígenas e seus membros, causados pela disputa pela terra e seus recursos naturais, só terão uma definição com a demarcação da terra indígena.

Não existe ainda nenhuma infra-estrutura dentro da área indígena que demande uma quantia substancial de indenização. Pelo contrário, com poucas exceções, as benfeitorias existentes das fazendas e sítios são precárias. As benfeitorias existentes na vila e pontos de apoio ao garimpo poderão ser utilizadas pelas próprias comunidades indígenas futuramente.

A demarcação da terra tradicionalmente ocupada é uma obrigação legal do Estado Brasileiro a ser cumprida até junho de 1993 e um direito imprescindível dos Macuxi, Ingarikó e Wapixana que resitiram a mais de cem anos de colonização.

Pois bem, somente em passe de mágica se pode conciliar o ditame constitucional no sentido da preservação da posse indígena existente em 1988 – terras ocupadas – com a desproporcional demarcação contínua. Os fenômenos se contrapõem.

A lei do menor esforço, no que se deixou de levantar os espaços territoriais realmente ocupados pelos indígenas e protegidos, a partir de então, com a pecha de nulidade de atos de transferência subseqüentes, mostra-se nefasta e não atende aos interesses maiores de nacionalidade, harmonizando-se, isto sim, com as diversas sinalizações internacionais de cunho separatista. Não se pode mesmo crer que, em 1988, número limitado de indígenas ocupasse, de forma contínua, área tão vasta.

A seriedade da questão é tanta que os deputados Aldo Rebelo e Ibsen Pinheiro acabam de apresentar, no corrente mês, o Projeto de Lei nº 4.791, objetivando melhor definir a demarcação de terras indígenas. Assim o fizeram afastando a premissa de ser a apatia o mal da nossa quadra. Visa o projeto, inclusive, além de nova sistemática de demarcação, à intervenção do próprio Legislativo. Essa notícia consta de artigo do já citado professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Denis Lerrer Rosenfield, sob o título “Demarcação de terras indígenas”, veiculado no Jornal O Estado de S. Paulo do último dia 16 de março. Ressalta o articulista que:

O País já possui mais de 108 milhões de hectares de terras indígenas, o que corresponde a 13,5% do território nacional, para uma população que não ultrapassa 400 mil pessoas em terras propriamente rurais. No caso dos indígenas que vivem nas cidades, o problema é completamente outro, pois já são aculturados. Seus problemas são sociais, educacionais, de saúde, de moradia e de trabalho e, como tais, devem ser enfrentados. A questão, aqui, não é de ordem fundiária. Ora, tal extensão corresponde a uma boa fatia do continente europeu, correspondendo a muitos países. Logo, qualquer nova demarcação deveria ser extremamente criteriosa. Por exemplo, há em curso, em Mato

Grosso do Sul, como bem observam os dois parlamentares, uma disputa por demarcação de uma área de mais de 10 milhões de hectares de terra fértil. “A região concentra parte substancial da produção rural de Mato Grosso do Sul, onde trabalham 30 mil agricultores, e responde por 60% da produção de grãos daquele Estado”. Pode uma unidade federativa ser amputada de uma parte tão substancial de seu território?

E, então, conclui:

O Brasil é uma unidade federativa, não uma comunidade de nações. O processo histórico que conduziu a esse arcabouço constitucional, construído com muita dor e luta, não pode ser levianamente questionado por movimentos sociais, por ONGs nacionais e estrangeiras e organizações políticas que procuram redesenhar o País. Surge aí a idéia

e, pior, a pretensão de formação de nações indígenas, com direito à autodeterminação e ao autogoverno. Os mais engajados, como o Cimi, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e ONGs internacionais, já falam de reconhecimento internacional dessas nações em organismos internacionais. Advogam para que o País reconheça a Declaração dos Povos Indígenas, que sinaliza para esse caminho. A soberania nacional ficaria inviabilizada, com o País não podendo mais explorar livremente os seus recursos minerais e hídricos. Inclusive a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal estaria comprometida.

O clima de insegurança está instalado, podendo ter como desfecho situações de violência. “Proprietários cujos títulos foram regularmente emitidos pelo governo brasileiro se vêem subitamente na condição de invasores de suas próprias terras, em clara violação aos princípios da segurança jurídica e da boa-fé, que regem a relação entre o Estado e seus administrados”. Não se resolve um problema fundiário criando outro, em que os protagonistas, proprietários rurais e indígenas, aparecem ambos como vítimas. Eis por que a cautela democrática proposta pelos deputados Aldo Rebelo e Ibsen Pinheiro deve ser levada em máxima consideração.

Caberia, então, indagar qual a motivação desse projeto. Haveria a influência do que sinalizado, embora não encerrado este julgamento, pelo Supremo? Que a reflexão seja profícua. De tudo, surge o descompasso. Abandonou-se a premissa constitucional voltada à apuração da posse indígena em outubro de 1988 para ter-se, quem sabe considerado o menor esforço, a demarcação contínua como se, em toda a extensão territorial alcançada, houvesse a referida posse. O segundo descompasso está ligado à inviabilidade de harmonizar-se o isolamento ventilado, afastando-se a presença de brasileiros da área com a demarcação contínua. Uma coisa é dar-se a verificação da posse pelos indígenas em 1988 e preservá-la, impedindo-se a permanência de terceiros. Outra diversa, que não se coaduna com os ditames constitucionais, que a todos submetem, é fazer-se a demarcação contínua e, aí, em área de tamanho incompatível com o conceito de posse, chegar-se à exclusão dos que não sejam considerados, na via direta ou indireta, indígenas.

Neste caso, caminhar-se-á, na verdade, para o indesejável separatismo, para a limitação à liberdade de ir e vir prevista na Carta da República quanto a tantos outros brasileiros a formarem a maioria. Nesse contexto, vê-se o abandono do princípio de coerência da Constituição ressaltado pelo Professor Doutor Manoel Gonçalves Ferreira Filho em parecer apresentado a partir de consulta formalizada pelo Dr. Luiz Aparício Fuzaro, quando, então, citou o mestre vienense Hans Kelsen:

Esta unidade também se exprime na circunstância de uma ordem jurídica poder ser descrita em proposições jurídicas que se não contradizem.

Teoria Pura do Direito. Tradução Portuguesa – Amado Ed., Coimbra, Tomo 2, 1962, p. 28.

Há de fazer-se justiça. A Constituição brasileira mostra-se um todo composto de normas interligadas, que não apresentam, considerado, ao menos, o texto primitivo, contradições. O que se passa a ter é visão distorcida, à mercê de interpretação discrepante do que nela se contém, potencializando-se certos dispositivos, e se lhes dando alcance insuplantável, em detrimento de outros, como se houvesse, no Documento Maior, preceitos de hierarquias diversas. Repito, à exaustão, para ouvidos que não se fazem sensíveis à realidade: a Carta Federal consagra, acima de tudo, a ordem natural das coisas, é ato de inteligência decorrente da vontade do povo brasileiro, não possuindo normas em prejuízo de outras, não possuindo normas de patamares diferentes. Deve-se perceber essa verdade maior, sob pena de grassar a insegurança jurídica no que vieram a predominar critérios circunstanciais, critérios momentâneos, destoantes de valores perenes. Nesse mesmo sentido, considerado o instituto da propriedade, tem-se a visão do Professor e ex-Ministro integrante deste Tribunal José Carlos Moreira Alves, externada também em parecer que chegou às mãos do Colegiado.

Sob o prisma da demarcação setorizada, não é demais mencionar o entendimento do Ministério do Interior logo após a promulgação da Carta de 1988. Em pronunciamento à delegação parlamentar norte-americana em visita ao Brasil, em Brasília, no dia 13 de janeiro de 1989, o então ministro João Alves Filho esclareceu:

João Alves Filho – pronunciamentos, artigos e entrevistas (1987-1990)”. Brasília, 1990.

O objetivo dessa política está orientado para a preservação e melhoria das condições de vida e valorização da cultura das sociedades indígenas, impedindo a desarticulação de suas economias e autonomias tribais, assegurando-se os mecanismos de preservação, delimitação e demarcação de terras.

Em momento algum, versou-se o que viria à baila mais tarde, ou seja, o abandono do levantamento da real posse indígena em 1988, para ter-se não só a demarcação contínua que a despreza como também visão isolacionista, afastada a permanência de não-índios na área demarcada.

DAS TERRAS INDÍGENAS – GARANTIA CONSTITUCIONAL – CONFRONTO COM OS DIREITOS ADQUIRIDOS ANTERIORMENTE À CONSTITUIÇÃO DE 1988

Sustenta a União inexistir direito adquirido por particulares em relação a terras de posse indígena, sendo nulos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras ou a exploração das riquezas naturais delas constantes. As terras pertencem à União, tendo os silvícolas posse permanente. Assevera que o processo de demarcação é meramente declaratório e não constitutivo.

Eis trecho da ementa do Recurso Extraordinário nº183.188-0/MS, relatado pelo ministro Celso de Mello, publicado no Diário da Justiça de 14 de fevereiro de 1997:

[...]

- A importância jurídica da demarcação administrativa homologada pelo Presidente da República - ato estatal que se reveste de presunção juris tantum de legitimidade e de veracidade - reside na circunstância de que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, embora pertencentes ao patrimônio da União (CF, art. 20, XI), acham-se afetadas, por efeito de destinação constitucional, a fins específicos voltados, unicamente, à proteção jurídica, social, antropológica, econômica e cultural dos índios, dos grupos indígenas e das comunidades tribais.

A QUESTÃO DAS TERRAS INDÍGENAS - SUA FINALIDADE INSTITUCIONAL.

- As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios incluem-se no domínio constitucional da União Federal. As áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva. A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, §§ 2º, 3º e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

[...]

Vale transcrever a ementa do acórdão relativo ao Recurso Extraordinário nº 219.983-3/SP, do qual fui relator, julgado pelo Plenário em 9 de dezembro de 1998:

BENS DA UNIÃO - TERRAS - ALDEAMENTOS INDÍGENAS - ARTIGO 20, INCISOS I E XI, DA CARTA DA REPÚBLICA - ALCANCE.

As regras definidoras do domínio dos incisos I e XI do artigo 20 da Constituição Federal de 1988 não albergam terras que, em passado remoto, foram ocupadas por indígenas.

No voto proferido, fiz um retrospecto do tratamento conferido às terras ocupadas por indígenas no País, sob a égide das Constituições anteriores:

[...] A esta altura cabe indagar: nas previsões das Cartas pretéritas e na da atual, no que alude a “... terras que tradicionalmente ocupam...”, é dado concluir estarem albergadas situações de há muito ultrapassadas, ou seja, as terras que foram, em tempos idos, ocupadas por indígenas? A resposta é, desenganadamente, negativa, considerado não só o princípio da razoabilidade, pressupondo-se o que normalmente ocorre, como também a própria letra dos preceitos constitucionais envolvidos. Os das Cartas anteriores, que versaram sobre a situação das terras dos silvícolas, diziam da ocupação, ou seja, de um estudo atual em que revelada a própria posse das terras pelos indígenas. O legislador de 1988 foi pedagógico. Após mencionar, na cabeça do artigo 231, a ocupação, utlizando-se da expressão “... as terras que tradicionalmente ocupam,

competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, veio, no § 1º desse mesmo artigo, a definir o que se entende como terras tradicionalmente ocupadas. Atente-se para a definição, no que, ante a necessidade de preservar-se a segurança jurídica, mais uma vez homenageou a realidade.

§ 1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por ela habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Mais do que isso, no parágrafo seguinte cuida a Carta da República de deixar explícita a necessidade de ter-se, como atual, a posse:

§ 2º. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Esse precedente serviu de fundamento para a edição do Verbete nº 650 da Súmula do Supremo, com a seguinte redação:

Os incisos I e XI do artigo 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.

No voto condutor deste julgamento, do ministro Carlos Ayres Britto, está consignado ser o marco temporal da ocupação a data em que a Carta de 1988 veio à baila:

I – o marco temporal da ocupação. Aqui é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação da área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro.

Contudo, examinando o confronto do direito dos indígenas com o daqueles que ocupavam as terras - e a ocupação não admite sobreposição -, ainda que anteriormente à promulgação da Carta, o ministro Carlos Ayres Britto, relator, assentou:

[...] E tudo a expressar, na perspectiva da formação histórica do povo brasileiro, a mais originária mundividência ou cosmovisão. Noutros termos, tudo a configurar um padrão de cultura nacional precedente à do colonizador branco e mais ainda do negro importado do continente africano. A mais antiga expressão da cultura brasileira, destarte, sendo essa uma das principais razões de a nossa Lei Maior falar do reconhecimento dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

O termo “originários” a traduzir uma situação jurídicosubjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. [...] Pelo que o direito por continuidade histórica prevalece, conforme dito, até mesmo sobre o direito adquirido por título cartorário ou concessão estatal.

É necessária a análise do objetivo da norma inserta no § 6º do artigo 231 do Diploma Maior:

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Nesse ponto, valho-me do voto que proferi no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.575-5/MS, apreciado pelo Plenário em 3 de fevereiro de 1994, quando, relator, fiquei vencido, tendo o Colegiado indeferido a ordem, ressalvando aos impetrantes o direito de buscar as vias ordinárias:

Qual é o alcance do disposto no artigo 231 da Constituição Federal de 1988? Implica a garantia de permanência dos indígenas nas terras? Assegura o retorno dos indígenas a terras em alguma época, ainda que perdida no tempo, ocupadas, fulminando-se uma cadeia de títulos devidamente registrados?

[...]

À época da alienação das terras pelo Estado, passando, portanto, ao particular, vigorava a Carta de 1934 que, no artigo 129, assim dispunha:

“Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizando, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.

O preceito foi repetido, sob o nº 154, na Carta de 1937. A Constituição de 1946 também mostrou-se tímida quanto à proteção das terras indígenas, adotando o critério das duas que a precederam, com ligeira modificação formal do texto:

“Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem”.

Constata-se a existência de dois preceitos distintos: o primeiro de natureza programática, no que direcionado ao respeito à posse dos silvícolas. O segundo, de cunho proibitivo quanto à transferência.

Somente com a Lei Básica de 1967 cuidou-se da matéria em maior extensão. Estabeleceu-se a inalienabilidade das terras habitadas pelos silvícolas, remetendo-se, então, à legislação federal e aludiu-se à posse permanente, reconhecido o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nela existentes – caput do artigo 198. A previsão sobre o usufruto resultou do fato de, mediante o artigo 4º, inciso IV, de tal Carta, haverem sido incluídas entre os bens da União “as terras ocupadas pelos silvícolas”, definição que não ocorrer com as Constituições de 1934 (artigo 20), de 1937 (artigo 36) e na de 1946 (artigo 34), valendo notar que esta última sequer usou da forma alargada das duas primeiras, que contemplaram a referência genérica aos “bens que pertencerem à União, nos termos das leis atualmente em vigor”, isto quanto ao domínio federal.

Pois bem, com o Diploma Maior de 1967 foram cominadas a nulidade e também a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza de atos que tivessem por objeto o domínio, a posse e a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas - § 1º. Previu-se mais, ou seja, que tais fenômenos – nulidade e extinção de efeitos – não dariam aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio –

§ 2º. Quando da entrada em vigor de tais preceitos – em 1967 – e pelos trabalhos antropológicos realizados, os indígenas – hoje cerca de 150 – já estavam há pelo menos

vinte e sete anos longe de suas terras e, portanto, quer para a definição do domínio da União, quer para a proteção aos próprios silvícolas já não se podia falar em terras por eles ocupadas. O Estado alienara-as em dezembro de 1937, ou seja, trinta anos antes da inovadora disciplina constitucional. A Emenda Constitucional de 1969 não implicou alteração de tais normas, conforme depreende-se, até mesmo, da repetição dos números dos artigos, parágrafos e incisos a elas relacionadas.

E o que houve com a promulgação da Carta de 1988?

Uma revolução na matéria, fulminando-se situações de há muito constituídas sob o pálio de ordens constitucionais precedentes? Por acaso desconheceram-se títulos de propriedade compreendidos em cadeia iniciada há mais de cinqüenta anos, ou seja, há mais de meio século, viabilizando-se o retorno dos silvícolas a terra ocupadas em período anterior? A resposta é desenganadamente negativa.

É certo que o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias impôs à União o dever de concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição. Todavia, ao cogitar-se dos bens da União, dentre eles incluíram-se não as terras que outrora foram ocupadas pelos silvícolas e que, por isto ou por aquilo, deixaram de sê-lo e, mais do que isso, passaram ao domínio privado, atuando como alienante o próprio Estado. Aludiu-se às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios – inciso XI do artigo 20, o que, no campo da razoabilidade, da segurança da vida de um Estado Democrático de Direito, faz pressupor situação de fato definida – a ocupação – muito embora presentes conflitos quanto aos limites em que verificada.

No particular, é temerário falar em terras imemoráveis com o alcance que vem sendo atribuído à expressão, ou seja, de autorizar o desfazimento de uma gama de atos, desalojando-se tantos quantos confiaram na ordem jurídica em vigor e, portanto, na formalização das relações jurídicas de que participaram. Não, a tanto não leva a interpretação da atual Carta, nem da que lhe antecedeu. Em momento algum visou-se a corrigir as imensas injustiças praticadas contra aqueles que já habitavam o Brasil à época da descoberta, porquanto isto acabaria por ocorrer com o sacrifício de quem não vivenciou as práticas de outrora e de valores tão caros quando em jogo a segurança na vida em uma sociedade.

A atual Carta não assegura aos indígenas o retorno às terras que outrora ocuparam, seja qual for a situação jurídica atual e o tempo transcorrido desde que as deixaram. O reconhecimento de direitos contido no artigo 231 está ligado, no particular, às “terras que tradicionalmente ocupam” (presente), sendo que houve nítida preocupação em definir o sentido da expressão. De acordo com o § 1º, são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Constata-se que toda a definição parte do pressuposto de as terras vierem sendo habitadas pelos silvícolas, valendo notar que, coerentemente, o § 1º do citado artigo veda a remoção dos grupos indígenas de suas terras. Por outro lado, a regra sobre a nulidade, extinção e ausência de produção de efeitos jurídicos, verdadeira superposição de conseqüências, isto quanto aos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere o artigo ou a exploração das riquezas naturais do solo, rios e lagos nelas existentes, ressalvando relevante interesse público da União - § 6º - não tem alcance suficiente a fulminar alienação que foi formalizada por unidade da Federação há mais de meio século, sob pena de abrir-se campo propício a um sem número de reivindicações em tal sentido, pois o artigo 232 da Carta cogita da legitimação das comunidades e organizações indígenas para ingressar em Juízo em defesa dos direitos e interesses adquiridos. Fico a imaginar o descalabro do enfoque abrangente que respaldou o Decreto de homologação.

Para os fins do artigo 231 da Constituição Federal, admitiu-se não a habitação das terras indígenas em período ao menos posterior à Carta de 1967, mas até 1938. Imagine-se o que poderá vir a acontecer com áreas em que hoje existem grandes cidades e que outrora foram ocupadas por índios.

Não, a isto não conduzem os preceitos constitucionais aplicáveis à espécie. Prevêem não a devolução das terras das quais de há muito foram retirados os indígenas e que hoje estão na titularidade de pessoas diversas, mas asseguram a permanência dos índios nas que por eles estão habitadas, podendo-se cogitar de retroação à vigência da Carta de 1967, a que pela primeira vez dispôs sobre o tema com as conseqüências drásticas acima consignadas. A retroação aos idos de 1938, com a declaração de ineficácia dos títulos formalizados e despejo sumário daqueles que nelas estão alojados, é passo demasiadamente largo, que não atende aos ditames constitucionais, especialmente quando estes também albergam o direito de propriedade.

Razões humanísticas, o clima da ECO 92 – época em que foi assinado o Decreto homologatório – não se sobrepõem à Lei Máxima. Configuram ato violador do direito líquido e certo dos Impetrantes à propriedade da qual são titulares a demarcação tal como homologada – ou seja, a partir da constatação de que até 1938 os índios estiveram nas terras, e para os fins do artigo 231 da Carta Federal – e a nulidade, extinção e retirada dos efeitos jurídicos dos atos sucessivos de alienação a partir de 1937 – folha 79.

Acresce a isto que mesmo diante das conseqüências jurídicas do Decreto homologatório da demarcação – se é que ele realmente as tem – posto que formalmente baixado para os fins fixados no artigo 231 da Constituição Federal, os Impetrantes não foram cientificados para, querendo, acompanhar o processo administrativo que lhe serviu de base e no qual se entendeu pelo enquadramento das terras como de ocupação indígena.

Somente com a conclusão respectiva se lhes dirigiram cartas comunicando a reocupação da área pelos índios e conferindo o exíguo prazo de cinco dias para desocupação, sob pena de a FUNAI não se responsabilizar por atos predatórios dos indígenas, seguindo-se o requerimento junto ao Ofício de Imóveis com o objetivo de alterar os registros constantes das matrículas.

O simples fato de tratar-se de um processo administrativo de demarcação de terras não exclui a observância das regras constitucionais asseguradoras do direito de defesa – incisos LIV e LV do artigo 5º. O que se nota é que os Impetrantes tiveram os imóveis alcançados pelo Decreto de homologação, sem que tenham participado do processo administrativo que lhe deu causa.

Por tudo isso, concedo a ordem pleiteada para cassar o Decreto do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, datado de 21 de maio de 1992, e que foi publicado no dia imediato, relativo às terras situadas no Município de Aral Moreira – Estado de Mato Grosso do Sul – e que nele estão discriminadas.

É o meu voto.

Sob o ângulo de haver o domínio da União, cabe transcrever a ementa do acórdão relativo ao Recurso Extraordinário nº 101.037-1/SP, da relatoria do ministro Francisco Rezek, publicada no Diário da Justiça de 19 de abril de 1985:

ILHAS OCEÂNICAS. C.F., ART-4.-II. HÁ DE SER ENTENDIDA ESTA EXPRESSÃO EM SEU SENTIDO TÉCNICO E ESTRITO, VISTO QUE O CONSTITUINTE DE 1967 POR CERTO NÃO PRETENDEU INSCREVER, ABRUPTAMENTE, NO DOMÍNIO DA UNIÃO, BENS SITUADOS EM CENTROS URBANOS, NAS ILHAS LITORÂNEAS, E INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO DE ESTADOS, MUNICÍPIOS E PARTICULARES. MÉRITO DA SENTENÇA SINGULAR E DO ACÓRDÃO DO T.F.R. HIPÓTESE DE NÃOCONHECIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO DA UNIÃO.

Analisando a superveniência da Carta de 1967, no âmbito do dispositivo que incluiu entre os bens da União as ilhas oceânicas, destacou Sua Excelência:

Parece seguro que o constituinte de 1967, ao empregar o termo “ilhas oceânicas” no art. 4º-II do texto maior, fê-lo no exato sentido e limitado que reconhecidamente ostenta há tanto tempo entre nós. A tese da União não é desarrazoada à consideração simples do texto constitucional, no preciso tópico em exame. Não seria correto, entretanto, enunciar pela metade os efeitos dessa tese, usando-a como obstáculo ao usucapião postulado por uma família que se instalou há cinqüenta anos num terreno de Ilhabela, e escamoteando, no mesmo passo, tudo quanto de absurdo a referida tese importa consigo, sobretudo à vista das circunstâncias em que se produziu a Carta de 1967, e do fato de que a federação é ainda, embora tantos o ignorem, a forma do Estado brasileiro. A ler na expressão “ilhas oceânicas” o que lêem, neste momento, os patronos da fazenda federal, e dada a realidade elementar de que contra o comando constitucional não há direito adquirido ou ato jurídico perfeito que se contraponha, teremos três Unidades federadas – não menos que três Unidades federadas – perderam, em 1967, suas capitais para o patrimônio da União. Em São Luís do Maranhão, bem assim em Vitória e Florianópolis, o Estado e o município já não deteriam seus bens dominicais, nem os de uso especial, nem os de uso comum do povo. Ter-se-ia extinto, igualmente, o patrimônio privado. Do palácio do governo à casa de família, da catedral ao clube recreativo, das lojas e fábricas à praça pública, tudo se haveria num repente convertido em patrimônio da União por obra do constituinte de 67, tomado este – logo este – por um rompante de audácia que teria assombrado os legisladores da Rússia de 1918. Igual fenômeno ter-se-ia abatido sobre importante centros urbanos do Estado de São Paulo, situados em ilhas costeiras, bem como sobre outras incontáveis cidades e povoações que se estendem pelo litoral atlântico. A modéstia, no entanto, terá levado os patronos da fazenda federal a silenciar sobre essas admiráveis conseqüências do seu conceito de “ilhas oceânicas”, preferindo enunciá-lo tão só em face do particular que reclama do Judiciário o reconhecimento da prescrição aquisitiva.

Surge o problema alusivo ao interesse jurídico dos fazendeiros que possuem título de propriedade legitimado pelo Incra em área posteriormente demarcada. A União sustenta a nulidade dos títulos, pois a terra sempre lhe pertenceu, ante o artigo 231 do Diploma Maior. Vejam o que consignou a respeito o ministro Peçanha Martins, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Mandado de Segurança nº 4.821/DF pela Primeira Seção daquela Corte:

[...]

E perguntar-se-á, diante dessas normas, e das provas pré-constituídas nesses autos: serão nulos os títulos e respectivos registros, inclusive os originais expedidos pelo Estado do Maranhão? Diz a FUNAI que sim, porque as terras seriam de posse permanente indígena. Pode, porém, a própria União, que é a proprietária da terra indígena, declarar, por um dos seus órgãos, a posse permanente indígena? Penso que não. O contrário seria admitir pudesse a união ser parte e juiz do seu próprio interesse. De outro lado, como admitir se faça tábula rasa do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, princípios constitucionais consagrados por todas as Constituições democráticas?

Invoca-se o processo estabelecido no Decreto n° 22, de 04.02.1991, que em nenhum momento faz qualquer referência ao contraditório e a ampla defesa do cidadão brasileiro ou mesmo estrangeiro que estiver ocupando tais terras ou delas for proprietário também por compra direta ao Estado, a quem a própria Constituição defere a propriedade das "terras devolutas não compreendidas entre as da união" (art. 26, IV). Vale dizer que nos termos do art. 20, "são bens da união: II. As terras devolutas indispensáveis a defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e a preservação ambiental definidas em lei; XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios."

A Lei 6001/73 comete a órgão federal a defesa judicial ou extrajudicial dos direitos dos silvícolas e das comunidades indígenas (art. 35), e, no art. 36, prescreve:

"Art. 36. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, compete à União adotar as medidas administrativas ou propor por intermédio do Ministério Público Federal, as medidas judiciais adequadas à proteção da posse dos silvícolas sobre as terras que habitam."

E no parágrafo único complementa:

"Parágrafo único. Quando as medidas judiciais previstas neste artigo forem propostas pelo órgão federal de assistência, ou contra ele, a União será litisconsorte ativa ou passiva".

Como se constata, o Estatuto do Índio, como não podia deixar de ser, submete ao Poder Judiciário a solução dos litígios que envolvam as terras indígenas, mormente a posse delas. E não poderia deixar de ser assim num estado de direito democrático. A União, volto a dizer, não poderá ser parte e juiz da causa. Estou hoje convencido que tem razão o eminente Min. José de Jesus quando aponta a necessidade de ação discriminatória para identificar a propriedade das chamadas terras indígenas que estejam ocupadas por terceiros. No caso dos autos, por exemplo, há que se indagar qual dos órgãos da União terá procedido com acerto: O Banco do Brasil, que examinou os títulos de propriedade, os mesmos que só conferem presunção júris tantum, e concedeu vultoso financiamento aos proprietários? Ou o IBAMA que lhes concedeu autorização para desmatamento e implantação de serraria? Ou, ainda o Grupo de Trabalho Interministerial que emitiu o Parecer n° 197, de 30.08.88, de que resultou a edição da Portaria n° 158/88 (doc. 100), retificando a Portaria Interministerial n° 076/88 (doc. 158) e reduzindo a área indígena a uma superfície de 65.700 ha?

Qual dos órgãos da administração direta e indireta está certo? E, sobretudo, quando estaria correta a União: na edição da Portaria 76 ou, ao revés, na de n° 158? Tais dívidas e incertezas não poderiam justificar a edição da Portaria s/n° impeditiva do trânsito e permanência dos que ocupam e lavram a terra nem nos regimes autoritários ou

ditatoriais. No estado de direito democrático brasileiro, a Portaria, ilegal no seu item III, porque editada por autoridade não autorizada por lei, como bem assinalou o Min. Milton Pereira, e inconstitucional toda ela, porque desatende aos princípios constitucionais da liberdade de ir e vir, desrespeita o princípio do contraditório e ampla defesa e ignora o devido processo legal, violentando o direito de propriedade.

Eis como concluiu o Colegiado:

PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. POSSES OUTORGADAS PELO INCRA. DESPACHO DO MINISTRO DA JUSTIÇA Nº 38/96.

1. O ato Ministerial impugnado desobedeceu as prescrições do Decreto 22/91 e desconsiderou os Decretos Presidenciais 67.557/70 e 68.443/71, consoante os quais a área objeto do presente mandado de segurança foi declarada de interesse social, para fins de reforma agrária, delas não podendo ser desapossadas as inúmeras famílias ali assentadas pelo INCRA, desde 1982.

2. Segurança concedida para, confirmando a liminar, anular o Despacho nº 38/96.

É hora de finalizar este voto de mérito, que reconheço já ir longe. O tema impôs-me uma reflexão maior, em que pese não ter frutificado o pedido antecipado de vista – o qual resultaria no terceiro voto e não no nono - em face da circunstância de os colegas que me antecedem na ordem de votação não haverem consentido. Paciência, o Colegiado sempre reserva

algumas surpresas. Nem por isso - a documentação o comprova - deixei de debruçar-me sobre a momentosa controvérsia, procedendo como se fosse relator do processo, procedendo como se tivesse que veicular o primeiro voto no caso.

Julgo procedente o pedido inicial, fixando os seguintes parâmetros para uma nova ação administrativa demarcatória, porquanto nula a anterior:

a) audição de todas as comunidades indígenas existentes na área a ser demarcada;

b) audição de posseiros e titulares de domínio consideradas as terras envolvidas;

c) levantamento antropológico e topográfico para definir a posse indígena, tendo-se como termo inicial a data da promulgação da Constituição Federal, dele participando todos os integrantes do grupo interdisciplinar, que deverão subscrever o laudo a ser confeccionado;

d) em conseqüência da premissa constitucional de se levar em conta a posse indígena, a demarcação deverá se fazer sob tal ângulo, afastada a abrangência que resultou da primeira, ante a indefinição das áreas, ou seja, a forma contínua adotada, com participação do Estado de Roraima bem como dos Municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia no processo demarcatório.

e) audição do Conselho de Defesa Nacional quanto às áreas de fronteira.

É o voto.

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